"Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim".
Crítica da razão prática, Kant.

Wednesday 28 October 2015

Tutelas de urgência contra a Fazenda Pública: breve resumo

A doutrina publicista do direito processual civil entende que a Constituição Federal, em seu artigo 100 e parágrafos, vedou a concessão de tutelas de urgência, contra a Fazenda Pública, quanto às obrigações de dar quantia em dinheiro.

São diversos os motivos pelos quais o legislador haveria optado pela vedação, figurando como a mais forte, dentre eles, a tentativa de evitar que sejam criadas, para o Poder Público, situações irreversíveis, com a consequente lesão ao Erário e, portanto, à sociedade.

Neste sentido, as Leis nº 8.437/1992, 9.494/1997 e 12.016/2009 trouxeram hipóteses proibitivas da concessão de tutela de urgência.

O art. 2º-B da Lei 9.494/1997 veda a execução provisória de sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores.

Já a Lei 8.437/1992, em seu art. 1º,  veda a concessão de medida liminar contra o Poder Público nos casos em que se veda a concessão de liminar em sede de mandado de segurança, quais sejam: compensação de créditos tributários; entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior; reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza, nos termos do art. 7º, §2º, da Lei nº 12.016/2009. A Lei nª 8.437/1992 vedou ainda, liminares que defiram compensação de créditos tributários ou previdenciários, em seu art. 1º, §5º.

Tais vedações tiveram sua validade questionada por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade de nº 4, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a constitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/1997, que estende às hipóteses do CPC as vedações da legislação específica para concessão de liminares contra o Poder Público.

Em que pese figurar como crítica doutrinária, o regime de precatórios e o reexame necessário - enquanto condição objetiva de eficácia da sentença - são plenamente conciliáveis com o sistema de antecipação de tutela contra o Poder Público. Isso porque o próprio sistema de precatórios, previsto na Constituição, seria por si só um óbice à concessão de liminar consistente em cumprimento de obrigações pecuniárias, e a legislação infraconstitucional estaria lhe dando aplicação.

Por outro lado, o reexame necessário não oferece óbice à concessão de liminares contra o Poder Público por si só, fora das hipóteses legais de restrição. O reexame necessário constitui condição objetiva de eficácia da sentença, mas não de provimentos urgentes. Assim é que se faz possível conceder liminares em sede de mandando de segurança, mesmo diante da necessidade de remessa necessária posterior.

A impossibilidade de concessão de liminares quando for irreversível a medida é regra geral constante do art. 273, §2º do Código de Processo Civil. Essa regra se repete no art. 1º, §3º, da Lei nº 8.437/1992, que veda a concessão de liminar, contra o Poder Público, que esgote o objeto da ação. Em que pese ser regra expressa, a norma deve ser ponderada mediante a aplicação de princípios, pois há casos em que a não concessão da tutela de urgência pode acarretar inequivocamente um dano irreversível. Nesses casos, merece ser afastada a restrição, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

A tutela antecipada é, em regra, concedida mediante decisão interlocutória. Neste sentido, mostra-se naturalmente impugnável pela via do agravo. Considerando que, em regra, a decisão que a concede é suscetível decausar ao Ente lesão grave ou de difícil reparação, deve o agravo ser interposto na modalidade de instrumento.

Ainda, tendo em vista previsões constantes do art. 15 da Lei nº 12.016/2009 e art. 12, §1º, da Lei nº 7.347/1985, mostra-se cabível também o requerimento de suspensão de liminar ao Presidente do tribunal que seria competente para apreciar eventual recurso, quando a liminar concedida oferecer risco à ordem, segurança, saúde e economia públicas. Tal pedido, conforme a jurisprudência do STJ, ostenta natureza política, e não jurídica.

Por fim, mostra-se cabível para impugnar a concessão de liminar contra o Poder Público, também, o ajuizamento de reclamação, notadamente quando violar o entendimento fixado nos autos da já mencionada ADC nº 4.

A reclamação, que para o STF possui natureza de direito de petição, é prevista nos artigos 102, I, l, 103-A, §3º e 105, I, f, da Constituição Federal, artigos 13 a 18 da Lei nº 8.038/1990 e art. 7º e parágrafos da Lei nº 11.417/2006, e constitui instrumento cabível para impugnar decisões que violem a competência do STF e do STJ, bem como a garantia de suas decisões, ou violem súmula vinculante da jurisprudência do STF. Sendo esse o caso, mostra-se cabível o ajuizamento de reclamação.

Saturday 21 February 2015

Possibilidade de usupião de bens de herança

Pelo princípio de Saisine (droit de Saisine), “aberta a sucessão – o que ocorre com a morte da pessoa –, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários” [1]. A herança constitui-se, assim, na universalidade dos bens de propriedade do de cujus, que passa de imediato aos herdeiros e forma um todo indivisível até a partilha (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil).
A pretensão de usucapião, por sua vez, tem natureza meramente declaratória [2], de sorte a sentença que julgar procedente a demanda terá efeito de reconhecer uma situação de propriedade preexistente. Para Daniel Amorim Assumpção Neves, “a propriedade não é constituída pela sentença, e sim pelo preenchimento dos requisitos legais verificados na ação e reconhecidos na decisão” [3].
Assim, preenchidos os requisitos legal previamente à abertura da sucessão, o bem não irá entrar na universalidade herdada, razão pela qual é possível o ingresso de ação de usucapião.
O Superior Tribunal de Justiça, bem como os demais Tribunais pátrios, têm entendido pela possibilidade:
Ementa: USUCAPIÃO. CONDOMINIO. PODE O CONDOMINO USUCAPIR, DESDE QUE EXERÇA POSSE PROPRIA SOBRE O IMOVEL, POSSE EXCLUSIVA. CASO, PORÉM, EM QUE O CONDOMINO EXERCIA A POSSE EM NOME DOS DEMAIS CONDOMINOS. IMPROCEDENCIA DA AÇÃO (COD. CIVIL, ARTS. 487 E 640).
2. ESPÉCIE EM QUE NÃO SE APLICA O ART. 1.772, PARAGRAFO 2. DO COD. CIVIL.
3. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (STJ. REsp 10.978/RJ, Rel. Ministro NILSON NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/05/1993, DJ 09/08/1993, p. 15228)

Ementa: CONDOMÍNIO. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio). Recurso conhecido e provido. (STJ. REsp 214.680/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/1999, DJ 16/11/1999, p. 214)

Ementa: CIVIL. USUCAPIÃO DECLARADA EM FAVOR DE CONDÔMINO. REFLEXOS NA AÇÃO ORDINÁRIA PROPOSTA POR OUTRO CONDÔMINO CONTRA TERCEIRO EM RAZÃO DA MESMA ÁREA. O usucapião de parte certa e determinada de condomínio tem o efeito de, nesta medida, individuar a área desapossada como propriedade exclusiva; já não subsistindo o condomínio, cessa a incidência do artigo 623 do Código Civil. Recurso especial não conhecido. (STJ. REsp 101.009/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/1998, DJ 16/11/1998, p. 40).

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. USUCAPIÃO. CONDOMÍNIO. SÚMULA 7/STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO HOSTILIZADA PELAS SUAS RAZÕES E FUNDAMENTOS. AGRAVO IMPROVIDO.
I - Esta Corte firmou entendimento no sentido de ser possível ao condômino usucapir se exercer posse exclusiva sobre o imóvel. Precedentes.
II - Não houve qualquer argumento capaz de modificar a conclusão alvitrada, que está em consonância com a jurisprudência consolidada desta Corte, devendo a decisão ser mantida por seus próprios fundamentos. Agravo improvido. (STJ. AgRg no Ag 731.971/MS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/09/2008, DJe 20/10/2008)

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. POSSE DECORRENTE DE SUCESSÃO. CONDIÇÕES. REQUISITOS PRESENTES. Comprovando o condômino que tinha a posse exclusiva de parte do imóvel, com os requisitos aptos a configurar a prescrição aquisitiva, pelo prazo suficiente, com ânimo de dono e sem a oposição de quem quer que seja, em área localizada e identificada, faz jus à declaração do usucapião em seu favor. (TJMG. 18ª Câmara Cível. Apelação nº 1.0604.06.000333-1/001. Rel. Des. Unias Silva, DJ: 22/02/08).

Conclui-se, portanto, que é possível haver ação de usucapião posteriormente à abertura de sucessão hereditária.



[1] TARTUCE. Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013, p. 1271.
[2] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado: e legislação extravagante. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 1461.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 6. Ed. rev., atual., e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Pualo: Método, 2014, p. 1571.