"Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim".
Crítica da razão prática, Kant.

Sunday 23 March 2014

POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS PARA O SERVIDOR CONTRATADO SEM CONCURSO PÚBLICO E DEMITIDO COM POSTERIOR ANULAÇÃO DO CONTRATO

Jurandi Ferreira de Souza Neto


O concurso público, previsto pela Constituição da República Federativa do Brasil como condição de ingresso no serviço público[1], é um procedimento administrativo que tem por escopo avaliar e selecionar para o serviço público os melhores candidatos para ocupar cargos e funções.
Para CARVALHO FILHO, o concurso público encontra seu fundamento nos princípios da isonomia ou igualdade, da moralidade administrativa e da competição[2], vez que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis a qualquer brasileiro, preenchidos os requisitos legais[3].
Contudo, sem embargo de sua obrigatoriedade, a regra do concurso público comporta exceções. Foram instituídas obrigatoriamente pela própria constituição, posto que apenas normas constitucionais podem abrir exceções dentre si.
Inicialmente, têm-se como exceção à regra do concurso público a investidura daqueles escolhidos para o quinto constitucional dos Tribunais do Poder Judiciário, cargos vitalícios (art. 94, CRFB). No mesmo sentido, é inexigível concurso, porquanto exceção constitucionalmente instituída, para investidura dos membros dos Tribunais de Contas (art. 73, §§1º e 2º, CRFB). Ainda, a investidura dos ministros do Supremo Tribunal Federal independe também de prévia aprovação em concurso público.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias possui também o condão de trazer exceções às regras constitucionais, visto que é também composto de normas constitucionais. Assim, em seu art. 53, I, dispôs que os ex-combatentes que tenham efetivamente participado de operações bélicas durante a Segunda Guerra Mundial seriam aproveitados no serviço público, sem a exigência de concurso, com estabilidade.
Há, também, os cargos chamados em comissão, declarados em lei como de livre nomeação e exoneração (art. 37, II, CRFB), bem como, por extensão, os empregados públicos em comissão[4]. Submetem-se os primeiros a regime estatutário, e a segunda situação a regime celetista.
Por fim, abre a Constituição a hipótese de “contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público” (art. 37, IX), criando os chamados servidores temporários[5] [6]. Tais servidores submetem-se a regime especial, a ser elaborado em lei, devendo cada ente interessado elaborar o seu próprio, obedecidas as diretrizes constitucionais. Não editada a lei, tal forma de contratação figurará como ilícita.
Portanto, não são celetistas, como decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Ementa: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária. (ADI 3395. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgamento: 05/04/2006).


Assim, não tendo tais contratos caráter trabalhista, não poderão ser objeto de jurisdição trabalhista.
Neste sentido, para CARVALHO FILHO, a relação jurídica entre tais servidores e a Administração Pública se trata de contrato administrativo de caráter funcional[7], posto que o texto constitucional traz que “a lei estabelecerá os casos de contratação”. No âmbito da União foi editada a Lei n.º 8.745, de 9 de dezembro de 1993.
Ainda, para o autor, superprorrogação do contrato temporário gera o reconhecimento de vínculo trabalhista, de forma que tal circunstância modificaria a natureza do contrato, ocasionada pelo desvirtuamento do regime. Na mesma esteira, para o Superior Tribunal de Justiça, ao se debruçar sobre situação na qual a servidora perdurou como temporária pelo transcurso de treze anos:

Ementa: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SERVIDORA MUNICIPAL. ADMISSÃO MEDIANTE CONTRATO ADMINISTRATIVO POR PRAZO DETERMINADO. CONTINUAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SEM A PRÉVIA PRORROGAÇÃO DO PACTO. AUSÊNCIA DE APROVAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO. CONTRATAÇÃO IRREGULAR. REGIME CELETISTA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a justiça comum é competente para o julgamento de lides que envolvam contratação temporária de servidor público por prazo determinado, disciplinada por lei especial, por ser estatutário o vínculo com a administração.
2. Na situação em apreço, todavia, a reclamante laborou para o Estado por aproximadamente 13 (treze) anos, de forma ininterrupta, sem que o contrato temporário primitivo fosse regularmente prorrogado.
3. Embora inicialmente a relação entre o poder público e a funcionária tenha cunho administrativo, a continuada prestação de serviços de forma habitual pela reclamante, com a anuência do Estado, desnatura o primitivo contrato administrativo por tempo determinado, passando o vínculo entre as partes a ser regido pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.
4. Além disso, a admissão da servidora não foi precedida do necessário concurso público, a também evidenciar a irregularidade na sua contratação.
5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Santarém/PA, ora suscitado. (Conflito de Competência n.º 70.226. Relatora: Maria Thereza de Assis Moura. STJ. Fonte: DJ 26/03/2007. Página 00204).

Elenca, não obstante, três pressupostos inafastáveis para a contratação por excepcional interesse público, quais sejam: a determinabilidade temporal, posto que o contrato deve prever expressamente o seu início e fim; a temporariedade da função, de forma que é cabível apenas para funções temporárias, visto que para as permanentes deve sempre haver concurso público; e a excepcionalidade do interesse público, uma vez que tal regime não é admitida para situações administrativas comuns.
Fora das hipóteses permissivas constitucionais, por força da regra constitucional de contratação, o contrato deverá ser declarado nulo. Contanto resta saber se mesmo com o contrato considerado nulo o servidor possuiria direitos dele advindos.
A princípio, o Tribunal Superior do Trabalho editou a súmula de número 363, orientando ser devida aos servidores contratados indevidamente (sem concurso público), excluídos aqueles efetivados pelo art. 19 do ADCT, apenas “o pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo”.
Posteriormente, foi promulgada a Lei n.º 8.036, de 11 de maio de 1990, que passou a reger o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, e que foi modificada pela Medida Provisória n.º 2.164-41, de 2001, que adicionou a ela o art. 19-A, a dispor da seguinte forma:

É devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário.

Assim, a súmula 363 do TST foi alterada, passa a vigorar com a seguinte redação:

TST Enunciado nº 363 – Contratação de Servidor Público sem Concurso – Efeitos e Direitos. – A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

Neste sentido, aquele servidor com contrato declarado nulo possuiria direito unicamente a pagamento devido e ao valor do FGTS, e neste sentido entende também o Superior Tribunal de Justiça, conforme se pode observar:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FGTS. CONTRATO ADMINISTRATIVO TEMPORÁRIO DECLARADO NULO POR AUSÊNCIA DE APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO. PAGAMENTO DE FGTS. OBRIGATORIEDADE.
1. O STJ, em acórdão lavrado sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil (REsp 1.110848/RN), firmou entendimento segundo o qual a declaração de nulidade do contrato de trabalho, em razão da ocupação de cargo público sem a necessária aprovação em prévio concurso público, equipara-se à ocorrência de culpa recíproca, gerando para o trabalhador o direito ao levantamento das quantias depositadas na sua conta vinculada ao FGTS.
2. O Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento no sentido de que "é devida a extensão dos direitos sociais previstos no art. 7º da Constituição Federal a servidor contratado temporariamente, nos moldes do art. 37, inciso IX, da referida Carta da República, notadamente quando o contrato é sucessivamente renovado". (AI 767024 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma). Precedentes.
3. Recentemente, a Segunda Turma deste Tribunal, firmou entendimento no sentido de que "Em razão de expressa previsão legal, "é devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário" (art. 19-A da Lei 8.036/90 incluído pela Medida Provisória 2.164-41/2001). "(AgRg no AgRg no REsp 1291647/ES, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/5/2013, DJe 22/5/2013) Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 1.368.155. Relator: HUMBERTO MARTINS. Fonte: DJE 30/09/2013).


E neste sentido sumulou que “o titular da conta vinculada ao FGTS tem o direito de sacar o saldo respectivo quando declarado nulo seu contrato de trabalho por ausência de prévia aprovação em concurso público” (Súmula 466/STJ).
Contudo, os tribunais têm se mostrado contrários à concessão de benefícios previdenciários no caso em comento:

Ementa: ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE TRABALHO TEMPORÁRIO NULO. DIREITO A SEGURO-DESEMPREGO. INEXISTÊNCIA.
1. Hipótese em que requer a impetrante, ora apelada, o pagamento de seguro-desemprego decorrente da dispensa supostamente sem justa causa decorrente de contrato de trabalho firmado com a Prefeitura Municipal de Campina Grande/PB;
2. Tais contratos foram celebrados para o exercício de cargos públicos e funções temporárias, os quais não geram o direito à percepção de seguro desemprego;
3. Demais disso, o contrato de trabalho nulo (porque feito sem concurso público, para prestação de serviço por necessidade temporária de excepcional interesse público em hipótese onde isso não era possível) não gera qualquer direito, salvo o de recebimento de remuneração pelos dias trabalhados, daí porque a impetrante não faz jus a seguro-desemprego;
4. Agravante que não atendeu ao disposto no parágrafo1º, do art. 523, do CPC.
5. Agravo retido não conhecido. Remessa oficial e apelação providas. (TRF5. Apelação / Reexame Necessário n.º 13661. Relator: Desembargador Federal Leonardo Resende Martins. Fonte: DJE 28/01/2011. Página 540).


Ementa: PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO TEMPORÁRIO. CONTRATAÇÃO SEM CONCURSO PÚBLICO. NULIDADE DO CONTRATO. SEGURO-DESEMPREGO. PAGAMENTO. AUTORIZAÇÃO POR DECISÃO LIMINAR. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. AGRAVO PROVIDO.
1. Hipótese em que a agravante insurge-se contra decisão liminar proferida em sede de mandado de segurança, que determinou o deferimento de pedido de seguro-desemprego, com a imediata liberação das respectivas parcelas em favor da impetrante.
2. (...)
3. Nos termos do artigo 37, parágrafo 2º da Constituição Federal, é nulo o contrato de trabalho firmado entre a Administração e o particular sem a realização de concurso público, quando não configurada qualquer das hipóteses legais autorizativas de contratação temporária em virtude de excepcional interesse público.
4. O seguro-desemprego se trata de um benefício previdenciário temporário, cujo fim é proporcionar assistência financeira ao trabalhador involuntariamente privado do emprego. É devido somente nas hipóteses em que o empregado pedir demissão, for dispensado por justa causa ou por culpa recíproca, ou ainda quando ocorrer a expiração do contrato firmado com prazo determinado.
5. O Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que a anulação da relação empregatícia entre o ex-empregado e o Poder Público, em razão da ausência de aprovação em concurso público, não retira daquele o direito às verbas salariais pelos serviços prestados. Assim, diante da violação à Constituição Federal ocorrida com a contratação de servidor, sem a realização de concurso público, o contrato de trabalho em questão é considerado nulo e nessa condição não produz nenhum efeito jurídico, exceto o direito ao recebimento do salário correspondente ao serviço efetivamente prestado.
6. No caso dos autos, tendo sido proferida decisão trabalhista em Ação Civil Pública Trabalhista, determinando a dispensa imediata de todos os trabalhadores contratados sem prévia aprovação em concurso público e sob o regime da CLT, por haver graves indícios de violação aos princípios constitucionais, há que se considerar não haver direito do agravado ao seguro-desemprego. Precedentes desta Corte.
7. Agravo de Instrumento provido para sustar o pagamento de seguro-desemprego deferido em favor da agravada. (TRF5. Agravo de Instrumento n.º 111459. Relator: Desembargador Federal Francisco Barros Dias. Fonte: DJE 03/02/2011. Página 266).


Cabe, no entanto, tecer críticas a tal posicionamento.
Inicialmente, vê-se que é assegurado ao servidor de contrato declarado nulo o pagamento da contraprestação pactuada.
O pagamento é feito mensalmente, e, até então, nos conformes de uma contratação legal. A contribuição previdenciária é retida na fonte, descontada do pagamento mensal já entendido pelo STJ como devido. O servidor putativo contribuiu.
Posto que o a contraprestação pecuniária é devida, temos, portanto, duas possibilidades: a) ao servidor é concedida a possibilidade de acesso aos benefícios previdenciários, uma vez que a previdência se trata de um sistema contributivo e ele efetivamente contribuiu, mesmo que ele seja considerado em categoria diversa como segurado; b) ao servidor sejam restituídas todas as verbas que foram descontadas para contribuição.
Basta, para tanto, recorrermos aos princípios da legalidade, da vedação do enriquecimento sem causa e da valorização do trabalho humano (art. 170, caput, CRFB). Ninguém pode enriquecer ilicitamente às custas de ninguém – muito menos o próprio Estado. Essa noção advém diretamente do fato de se tratar o Brasil de um Estado de Direito, que se submete às leis que cria.
Não bastasse, no entanto, os princípios da vedação do enriquecimento sem causa e da valorização do trabalho humano, não se pode olvidar de um dos princípios sobre os quais se fundamenta o Estado de Direito: o princípio da segurança jurídica.
O princípio da segurança jurídica é reconhecido como constitucional e permeia todas as relações jurídicas, daquelas sob regime de público[8] àquelas sob regime de direito privado (resolução do contrato por onerosidade excessiva superveniente, art. 478 do Código Civil[9]).
É corolário da segurança jurídica o princípio da proteção à confiança, sendo este, todavia, voltado a proteger a confiança que têm os indivíduos na legitimidade dos atos estatais. Por ambas as vias, vê-se necessário proteger os cidadãos do desvio de finalidade e da má gestão pública em geral, bem como sua perspectiva de certeza e estabilidade.
Ao se entender que anos ou décadas de trabalho de alguém, apesar das contribuições previdenciárias efetuadas, não lhe darão uma estabilidade futura (aposentadoria) ou auxílios necessários, desvaloriza-se todo o dispêndio físico e intelectual dedicado. Alguém que por décadas laborou debaixo da confiança de retornos eventualmente necessários passaria a não ter mais qualquer perspectiva ou segurança. Seria retirar-lhe parte de seu trabalho.
Portanto, conforme a teoria do fato consumado[10], há de se usar a proporcionalidade (exigibilidade, proporcionalidade stricto sensu e adequação) para avaliar se a convalidação do ato não surtiria, no caso concreto, menos prejuízos do que a declaração de nulidade, com vistas a proteger a estabilidade das relações jurídicas. Desta forma é feito no controle de constitucionalidade[11] e [12].



[1] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. Ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2012. São Paulo: Atlas, 2013. p. 631.
[3] CRFB, art. 37, I. Os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. Ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2012. São Paulo: Atlas, 2013. p. 634.
[5] GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 11. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 159-166.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., p. 604-608.
[7] Op. cit., p. 605.
[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., p. 37.
[9] TARTUCE. Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013. p. 607.
[10] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., p. 38.
[11] Lei 9.868/99, art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[12] Lei 9.882/99, art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Friday 21 March 2014

POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO AMPARO ASSISTENCIAL PREVISTO NA LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL AO IDOSO E AO DEFICIENTE ESTRANGEIROS RESIDENTES NO BRASIL

Jurandi Ferreira de Souza Neto



A princípio, cabe memorar que, conforme a Constituição da República Federativa do Brasil, “a assistência social será prestada a quem dela necessitar”.
Vê-se que a assistência social, no Brasil, tem por escopo proporcionar aos necessitados o acesso a uma vida minimamente digna – um Estado fundamentado no objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CRFB) não poderia fugir a tal dever.
Portanto, na busca por proporcionar uma vida minimamente digna, há que se falar na proteção de um patrimônio mínimo que garanta sua qualidade. Para o civilista Flávio Tartuce, “deve-se assegurar à pessoa um mínimo de direitos patrimoniais, para que viva com dignidade”[1].
Referida noção já é protegida em nosso sistema jurídico por inúmeros meios. E.g., a nulidade da doação universal (art. 548, Código Civil), a proteção do bem de família (Lei n.º 8.009/1990), a proteção do direito à moradia (art. 6º, CRFB), a proteção do imóvel em que reside pessoa solteira, separada ou viúva (Súmula 364, STJ) etc.
Para Luiz Edson Fachin, a proteção do patrimônio mínimo é manifestação do princípio da dignidade humana (art. 1º, III, CRFB), norma da qual decorre todo o ordenamento[2]:


A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama de princípio estruturante, constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a ideia de predomínio do individualista atomista no Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata.


Há de se dizer, portanto, que a assistência social busca tutelar a dignidade humana, proporcionando aos indivíduos incapazes de prover o próprio sustento um patrimônio mínimo, e que este mínimo existencial se trata de um direito fundamental, decorrente da proteção da dignidade humana.
Neste sentido, para a doutrina contemporânea[3], “são destinatários deste direito fundamental todos aqueles que, submetidos ao sistema jurídico brasileiro, sejam nacionais ou estrangeiros”. Para Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco[4], “o respeito devido à dignidade de todos os homens não se excepciona pelo fator meramente circunstancial da nacionalidade”.
Não obstante, no século XIX, o filósofo prussiano Immanuel Kant, ao tecer as conceituações fundamentais para o reconhecimento da dignidade humana, tratou inicialmente de algumas ideias opostas e discriminatórias para sua compreensão.
Uma das principais seria a da determinação da vontade, associada à liberdade, ou seja, espontaneidade e voluntariedade da ação. A partir deste pensamento, a determinação de um indivíduo diante de sua própria conduta poderia ser autônoma (espontânea e voluntária) ou heterônoma, ou seja, imposta por terceiros. Neste último caso não haveria liberdade. Dessa forma, o indivíduo deverá agir segundo o dever por si mesmo, conforme o que é racionalmente correto, porém espontaneamente, de forma que assim é determinada a liberdade, na capacidade de determinar autonomamente a própria vontade.
Neste sentido, a determinação da vontade deverá partir da razão individual, sendo esta a única maneira de se agir independentemente de vontades alheias. A razão, por sua vez, é determinada a partir de um imperativo, que seria outra ideia a ser considerada. Os imperativos comandam a razão hipoteticamente ou categoricamente. Hipoteticamente quando a ação será boa apenas como meio de conseguir algo mais, e categoricamente quando boa em si mesma.
Logo, temos como correto agir sob o motivo do dever por si próprio, de forma autônoma, o que nos guia a determinar nossa razão categoricamente, e não para o bem de outras ações.
Dessa forma, para a determinação categórica de nossa razão, ou seja, para que o imperativo de nossa razão seja categórico, Kant elaborou uma fórmula através da qual se imaginaria aquele imperativo, ou seja, aquele princípio para determinação da vontade como lei universal, orientando: "então aja como se a máxima de tua vontade pudesse se tornar sempre, ao mesmo tempo, lei universal"[5].
Mormente tal fórmula, deverá o ser racional agir fazendo, anteriormente, a análise da possibilidade de universalização daquela conduta. Ou seja, observar se a ação será certa ou errada a partir de seu extremo, extremo esse no qual aquela ação fosse corriqueira. Desse modo, porém, não se estaria refletindo sobre as consequências da ação, mas apenas avaliando sua retidão através de uma perspectiva mais extrema, e, por conseguinte, mais fácil de visualizar.
Foi, portanto, necessário explicar a teoria para chegar à última e mais relevante fórmula: a fórmula da humanidade[6], que ficou exposta através da seguinte passagem:


Supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. (grifos nossos).


Nesse sentido, chega à conclusão de que o homem, como ser racional, existe como um “fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”[7], de forma que não deverá nunca ser considerado um mero meio para satisfação de outra vontade, mas sempre deverá ser tratado também como um fim. Elabora, assim, o principal conceito referente à teoria da dignidade humana:

No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.[8]


Desse modo, podemos concluir que todo ser humano deve ser respeitado em sua existência, por sua essência, não restando sombra de dúvidas de que a titularidade dos direitos fundamentais é de todo e qualquer ser humano, pois em todo ele reside o fundamento de um possível imperativo categórico. O direito fundamental ao mínimo vital, portanto, é plenamente extensível a estrangeiros, porquanto universal e absoluto[9], de forma que condutas contrárias seriam não meramente ilegais, mas inconstitucionais, porque violadoras da dignidade humana.
Conquanto possível e devida referida prestação, não se pode olvidar de que o serviço de assistência social não poderá gerar enriquecimento ilícito, vedado por nosso ordenamento[10]. Assim, devem as autoridades administrativas analisar meticulosamente os casos e critérios.
Calha, inobstante, exibir que a bipartição atual dos direitos fundamentais em duas dimensões (subjetiva e objetiva) nos leva ao raciocínio de que a assistência social não existe para evitar que indivíduos carentes importunem a sociedade, em uma fraca tese utilitarista.
Os direitos fundamentais, apesar de em boa parte individuais (dimensão subjetiva), “transcendem a perspectiva da garantia de posições individuais, para alcançar a estatura de normas que filtram os valores básicos da sociedade política”[11]. A sua dimensão objetiva, portanto:


(...) faz com que o direito fundamental não seja considerado exclusivamente sob perspectiva individualista, mas, igualmente, que o bem por ele tutelado seja visto como um valor em si, a ser preservado e fomentado.[12]


Por fim, mostra-se oportuno registrar o posicionamento da jurisprudência pátria acerca do tema, qual seja:


1. Recurso interposto pelo INSS em face de sentença que julgou procedente o pedido de concessão de benefício assistencial de prestação continuada, nos termos do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal.
2. (...).
5. O benefício assistencial requer dois pressupostos para a sua concessão: a idade mínima e a hipossuficiência econômica.
6. (...).
12. No caso dos autos, pela leitura do laudo social e econômico, verifica-se que o núcleo familiar é composto pela idosa autora, nascida em 01.10.1930, portuguesa, que reside sozinha e não aufere renda, sendo o imóvel pertencente a seu filho, que reside em outra casa no mesmo terreno, com esposa e filho e ganha o equivalente a três salários mínimos em aposentadoria por invalidez.
13. O fato de a autora ser estrangeira não exclui o direito à assistência prestada pelo Estado Brasileiro, já que o mesmo reside no país e é detentor de direitos subjetivos e direitos fundamentais sociais e econômicos decorrentes da simples condição humana, como historicamente defendido por Kant. Deveras, a respeito desse tema, tenho que constitui mandamento constitucional de que o estrangeiro residente no país goza dos direitos fundamentais assegurados a todos os brasileiros (artigo 5º, da Carta da República). (...).
14. O artigo 203 da Constituição Federal diz que a assistência social será prestada a quem dela necessitar (...), cabendo ao magistrado analisar o caso concreto em toda a sua amplitude. No caso em apreço, a anciã autora adentrou ao nosso país, aqui fixando residência em 1953, ou seja, há aproximadamente 60 anos (...).
15. Assim, considerando que a parte autora comprovou o preenchimento dos requisitos necessários, quais sejam a idade e a situação de miserabilidade, verificada em descrição detalhada no laudo sócio econômico, está claro que a apelada faz jus ao benefício de prestação continuada de que trata o art. 203, V, da Constituição Federal, regulamentado pelas Leis n. 8.742/93 e 12.435/2011, e pelo Decreto n. 6.214/07.
16. (...).
18. Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS.
19. Condeno o recorrente ao pagamento de honorários advocatícios que arbitro em R$700,00, seguindo entendimento pacificado nesta Turma Recursal, nos termos das balizas trazidas pela legislação processual. É como voto. (TR5. Processo 00371814220114036301. Juiz(a) Federal Kyu Soon Lee. e-DJF3 Judicial 07/06/2013).


              Depreende-se da leitura que a dignidade humana caminha desvinculada da nacionalidade, posto que é intrínseca à essência humana em si. O Brasil, havendo tomado por princípio fundamental a dignidade humana e por objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, não se pode isentar de seu dever para com qualquer indivíduo.





[1] TARTUCE. Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013. p. 536.
[2] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 1190.
[3] ARONNE, Ricardo. Razão e caos no discurso jurídico e outros ensaios de direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 127.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 197.
[5] KANT, Immanuel. Critique of practical reason. Cambridge texts in the history of philosophy. Translated by Mary Gregor and introduction by Andrews Reath. Cambridge:  Cambridge University Press, 1997. p. 28.
[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 58.
[7] Op. cit.
[8] Op. cit., p. 65.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Op. cit.,  p. 162.
[10] Art. 884 do Código Civil.
[11] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 190.
[12] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 191.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA COLETIVA: A AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA DEFESA DO DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS


Jurandi Ferreira de Souza Neto[1]

A tutela coletiva se trata de uma proteção una de uma situação jurídica coletiva ativa ou efetivação de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres jurídicos coletivos)[2]. O processo coletivo, por sua vez, trata-se de um feixe de relações jurídicas[3] nas quais em um dos polos está contida uma coletividade de pessoas[4], um grupo ligado por um fato com uma relação jurídica interna[5].
Emergidas de um ato jurídico complexo de formação sucessiva (procedimento)[6], o processo coletivo se impõe como condição para o exercício do poder jurisdicional, seja em face de uma coletividade, seja em prol dela.
Calha ressaltar, todavia, que a referida coletividade (ou grupo), para os fins de tutela coletiva, não pode ser meramente pessoas distintas a exercer conjuntamente seu direito de ação. Tal fato ensejaria, ao extremo, um litisconsórcio multitudinário[7]. O que gera a legitimidade para a tutela coletiva é a matéria litigiosa a ser discutida.
Por tal fato se fala em uma estrutura molecular de processo, no qual várias estruturas ou sistemas atômicos (individuais e isolados) estariam ligados por um fato ou relação jurídicos.
Afirmam Didier Jr.e Zaneti Jr.[8] que a defesa dos direitos coletivos tem duas origens prováveis: a ação popular advinda da cultura greco-romana e as class actions anglo-saxãs. Interessante brocardo relativo ao referido instituto utilizado na Roma era o que afirmava rei sacrae, rei publicae.
Marcelo Abelha Rodrigues discorre sobre a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e sua importância para a abertura do sistema processual brasileiro para a defesa dos direitos coletivos[9]. Para ele, bem como para Didier Jr.e Zaneti Jr., o medo de um estado absolutista e invasivo levou os Códigos Civil e de Processo Civil a um liberalismo deveras exacerbado, o que gerou inúmeros entraves formalistas[10] e supressão de tutelas devidas[11].
Com o transcurso do tempo e estabelecimento de bases jurídicas mais seguras (e.g., a Constituição de 1988), o direito brasileiro criou confiança a ponto de caminhar hoje a largos passos para o neoprocessualismo[12], adaptação da ciência do processo à revolução teórica do constitucionalismo contemporâneo.
Dentre os vários pontos de evolução do ordenamento jurídico, bem como da forma que ele é visto, cabe trazer aquele quanto à força normativa da constituição e os direitos fundamentais.
Nos direitos fundamentais estão contidos aqueles de segunda geração (ou dimensão), quais sejam aqueles que exigem do Estado uma prestação de fazer (direitos sociais). Tais direitos carrearam a defesa dos direitos coletivos através da modernidade liberal – veja-se, por exemplo, os direitos trabalhistas, assim como a influência da revolução industrial para afirmação dos direitos sociais.
No Brasil, a Constituição de 1934, na República Nova, fortemente influenciada pela Constituição alemã de seu tempo (die Weimarer Verfassung ou die Verfassung des Deutschen Reichs), trouxe em seu rol de direitos fundamentais diversos direitos sociais. Ainda mais proeminente foi o rol de direitos sociais trazido pela Constituição da República Federativa do Brasil. Contudo, apesar do avanço formal, o Brasil carrega sequelas de um regime ditatorial, oposto diretamente a um Estado de Direito (aquele que se submete às próprias leis).
Os direitos fundamentais tiveram forte proteção. Vê-se, porém, que aqueles sociais são mais difíceis de se concretizar – exigem não uma conduta omissiva, mas comissiva, o que a Lei da Inércia parece desfavorecer.
Ao observar tal fenômeno, o alemão Karl Loewenstein[13] propôs uma nova classificação das constituições, quanto à sua realidade fática, a chamada Ontologische Klassifierung, através da qual tinha por constituições meramente semânticas (semantische Verfassung) aquelas simbólicas e inaplicadas. Disse ainda serem nominalistas (nominalistische Verfassung) aquelas que tinham por escopo tornar-se normativas (normativ Verfassung), enfim aplicadas.
Para combater o fenômeno da erosão da consciência constitucional[14], também observado por Loewenstein, Konrad Hesse escreveu uma obra entitulada de A Força Normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung), defendendo a necessidade de concretização das normas constitucionais.
Fortemente influenciado por tais ideais, o direito brasileiro passou a incorporar esse espírito e desenvolver defesas teóricas e instrumentos processuais para o combate da síndrome de inefetividade das normas constitucionais. Dentre estes se incluem como principais a ação direta de inconstitucionalidade por omissão[15] e o mandado de injunção[16].
Nesse cenário, os direitos coletivos passaram a ganhar força, de forma que a atividade jurisdicional assumiu papel imprescindível na sua defesa.
Assim, com a já crescente industrialização, necessidade de urbanização etc., observou-se ser essencial a ampliação da atividade jurisdicional para a defesa, por exemplo, dos consumidores.
Neste sentido, Didier Jr. e Zaneti Jr. atribuem à necessidade de ações coletivas dois fatores: um sociológico e um político.
O sociológico diz respeito, exatamente, à devida efetivação dos direitos fundamentais, de forma que se conceda a todos uma proteção una e eficaz. Seria, assim, relativo primordialmente ao princípio do acesso à justiça, este cívico e abstrato[17].
Enquanto una, vê-se que essa proteção se tornaria simultaneamente mais eficiente para o Estado, porquanto milhares de vezes mais econômica. O sentido político, portanto, reside no princípio da economia processual.
Os direitos coletivos genericamente tratados são chamados de direitos coletivos lato sensu, compreendidos todos aqueles que fazem jus à tutela coletiva. Como subdivisão dos direitos coletivos lato sensu, temos: os direitos essencialmente coletivos, que seriam os direitos coletivos stricto sensu e os direitos difusos (direitos fundamentais de terceira geração); e aqueles acidentalmente coletivos[18], que seriam os direitos individuais homogêneos.
Os direitos difusos são aqueles direitos metaindividuais e indivisíveis que pertencem a sujeitos indetermináveis e sem qualquer relação jurídica entre eles, e.g., a proteção do meio ambiente, da moralidade administrativa, bem como aquela contra propagandas enganosas e abusivas. Por tal motivo, a coisa julgada resultante de ações para tutela de direitos difusos tem efeitos erga omnes.
Os direitos coletivos stricto sensu são aqueles também metaindividuais e indivisíveis, porém, que são relativos a determinada classe de pessoas, ligadas, previamente à demanda, por uma relação jurídica base. Tal relação pode advir de affectio societatis (no caso de associações) ou mesmo de uma relação com a parte contrária, e.g., contribuintes de um mesmo tributo (fisco) ou estudantes de uma mesma escola.
Nas ações relativas a direitos coletivos stricto sensu a coisa julgada produz efeito ultrapartes[19], ou seja, vai para além das partes mas afetando apenas aquele grupo de pessoas que está sendo processualmente substituído.
Neste sentido, àqueles do grupo que houverem já ingressado como demandas individuais com mesma causa de pedir serão dadas duas opções: suspensão de sua demanda até o fim da ação coletivo ou o chamado right to opt out, que seria o direito de optar pela continuação de sua demanda individual e não submeter-se à coisa julgada coletiva.
Contudo, o art. 81, parágrafo único, III, do Código de Defesa do Consumidor, criou uma nova categoria de direitos a serem coletivamente tratados, os direitos individuais homogêneos.
Os direitos individuais homogêneos são aqueles individuais, mas coletivamente (molecularmente[20]) tratados em razão de sua homogeneidade ou origem comum, gerando uma espécie de coletividade por conta de lesão ou ameaça de lesão em massa. Para Nelson Nery Jr., “essa ação coletiva é deduzida no interesse público em obter-se sentença única, homogênea, com eficácia erga omnes de coisa julgada (CDC 103 III), evitando-se decisões conflitantes”[21].
Neste sentido, a demanda ingressada por órgão de defesa coletiva subsistirá em torno de pedido genérico, posto que as especificações individuais de cada caso deverão ser demonstradas na liquidação da sentença, que será feita individualmente, pela vítima e seus sucessores (art. 97, Código de Defesa do Consumidor). Conquanto processados coletivamente, não se pode olvidar de que se tratam de direitos individuais, de forma que as vítimas deverão ser individualmente ressarcidas/compensadas pelo dano sofrido.
Sendo, portanto, o pedido genérico, assim também o será a sentença[22], que não deverá identificar o beneficiário ou seu prejuízo, apuráveis posteriormente em liquidação individual de sentença. Conforme Luis Rodrigues Wambier, “não há possibilidade, diante da lei posta, de os legitimados obterem sentença que contenha condenação cujo quantum já esteja definido”[23].
Calha repisar que, em se tratando de direitos individuais homogêneos, por seu caráter individual, as vítimas poderão ingressar com ações individualmente (atômicas), bem como em litisconsórcio.
As vítimas ou seus sucessores poderão habilitar seus créditos individualmente para liquidação, e esta poderá ser realizada por arbitramento ou por artigos. Identificadas as vítimas, entretanto, poderá o próprio legitimado (substituto processual) proceder à liquidação individual, bem com à execução individual da sentença, situação na qual o valor da indenização será revertido em prol das próprias vítimas. Neste sentido, divergências jurisprudenciais[24] e doutrinárias, havendo a Suprema Corte, contudo, reconhecido a possibilidade.
A liquidação terá por escopo verificar a extensão do dano e a identidade da vítima.
Conforme o art. 100 do Código de Defesa do Consumidor, passado um ano sem identificação ou habilitação de interessados, a execução será feita coletivamente[25], por qualquer dos legitimados do art. 82[26], e o valor da indenização será revertido para o Fundo Federal de Defesa de Direitos Difusos (fluid recovery[27]). Convém firmar que o prazo de um ano não retira das vítimas o direito de liquidação e execução da sentença, figurando apenas como prazo após o qual se forma legitimidade extraordinária coletiva [28] para tal, de forma residual.
Liquidada individualmente a sentença (pelo interessado ou pelo legitimado), poderá ser instaurado processo autônomo individual para a execução da sentença coletiva liquidada, em contraste com a execução dos direitos coletivos stricto sensu e dos direitos difusos.





[1] Estagiário na Procuradoria-Seccional da Fazenda Nacional em Campina Grande/PB. Acadêmico de Direito FACISA/CESED.
[2] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 9.ª Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 38.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 16.ª Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 22.
[4] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 21.
[5] Op. cit., p. 67-75.
[6] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 21.
[7] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 31.
[8] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 23.
[9] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública. In Ações Constitucionais. 6.ª Ed., rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 355.
[10] Op. cit. p. 354.
[11] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 25-26.
[12] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 30-33.
[13] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Consituição brasileira. 8. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 64.
[14] Sobremaneira citado pelo Supremo Tribunal Federal. Vide Informativo de n.º 726. STF. RE 581352/AM. Relator: Min. Celso de Mello. Publicada no DJe de 1º.10.2013.
[15] Art. 103, §2º, Constituição da República Federativa do Brasil e arts. 12-A a 12-H da Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999.
[16] Art. 5º, LXXI, Constituição da República Federativa do Brasil e art. 24, parágrado único, da Lei n.º 8.038, de maio de 1990.
[17] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tulio Liebman/ v. 21). 2. Ed. Rev. e aum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p. 91.
[18] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 67.
[19] Op. cit., p. 69.
[20] Op. cit., p. 70.
[21] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado: e legislação extravagante. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.  p. 455.
[22] Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.
[23] WAMBIER, Luis Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. Ed. São Paulo: RT, 2006, p. 371.
[24] Vide Informativo nº 431. STF. RE 193.503/SP, RE 193.579/SP, RE 208.983/SC, RE 210.029/RS, RE 211.874/RS, RE 213.111/SP E RE 214.668/ES. Rel orig.: Min Carlos Velloso. Rel. p/ o acórdão: Min. Joaquim Barbosa, DJ 12.5.2006.
[25] Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
[26] Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a
autorização assemblear.
[27] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 354-356.
[28] Op. cit.