No ano de 1795, o prussiano Immanuel
Kant já exarava orientações gerais para conciliação das ordens jurídicas dos
diversos Estados (Zum ewigen Frieden,
“À paz perpétua”).
Por ter fortes influências
jusnaturalistas e, portanto, acreditar nos direitos inerentes a todo ser
humano, o provinciano de Königsberg aduziu que o direito positivo instituído
pelo Estado existe para organizar o exercício do direito natural no mundo
empírico [1]. Assim,
conquanto reconhecesse a existência de mais de uma ordem jurídica incidente
sobre um povo que houvesse optado por aderir a tratados internacionais [2],
afirmava que a dignidade humana deveria ser tratada como imperativo categórico
e defendida transnacionalmente [3].
Durante o século XIX, foi
invocada a expressão “international law
is part of the law of the land” [4],
defendida por Hersch Lauterpacht e combatida por Heinrich Triepel, em sua obra Völkerrecht und Landesrecht (1899) [5].
O dualismo, portanto, é a
corrente segundo a qual há duas ordens jurídicas impostas sobre o Estado que
participa do Direito Internacional: interna e internacional, plenamente
independentes. Os tratados unicamente vinculariam determina Estado em âmbito internacional,
nas relações com os demais Estados, mas nunca poderiam adentrar o território,
vinculando, verbi gratia, seu povo e
governo (enquanto Administração interna).
Vê-se que, assim, a teoria
sai em defesa da soberania dos Estados, razão pela qual defendia a necessidade
de se reproduzir internamente as normas contidas nos tratados firmados para que
estas pudessem vigorar neste âmbito. É a teoria
da incorporação, formulada por Paul Laband [6].
Em 1934, o austríaco Hans
Kelsen publicou sua maior obra, chama de Teoria
Pura do Direito (“Reine Rechtslere”),
na qual defendia a exitência de uma só ordem jurídica, de forma que a interna
seria subordinada à internacional. Buscava o jurista alertar para a “crescente
centralização da unidade organizada de uma comunidade universal de direito
mundial, ou seja, a formação de um Estado mundial” [7].
Eis a essência do monismo.
Para o austríaco, o monismo
seria mera “consequência gnoseológica” da teoria pura do direito [8],
visto que considera:
(...) impossível afirmar que o ordenamento jurídico estatal
singular e o direito internacional e ainda dois ordenamentos jurídicos
estatais, lado a lado, sejam sistema normativos válidos, ao mesmo tempo. [9]
Assim, pelo prisma da teoria
pura do Direito, deve haver uma única ordem jurídica, com respeito à hierarquia
dentre as normas, visando a evitar-se “contradições insuperáveis” [10].
Há ainda ramificações de
ambas as correntes. O dualismo é também defendido na forma de dualismo radical ou dualismo moderado, segundo o qual basta um procedimento
diferenciado pelo Legislativo, com vênia do Executivo, para que o tratado seja
incorporado no direito nacional[11].
O monismo, por sua vez, pode
ser subdivido em monismo nacionalista,
segundo o qual o sistema é uno mas a norma nacional (sobretudo a Constituição)
é soberana, defendida, v.g., por
Friedrich Hegel; e monismo
internacionalista, pelo qual as normas de Direito Internacional se sobrepõe
às internas, defendida por Kelsen.
A teoria dualista era
firmemente seguida no Brasil, até a década de 1970. As normas de Direito
Internacional deveriam ser, embora aprovadas pelo Congresso Nacional,
posteriormente reproduzidas para viger internamente.
Entretanto, através do
Recurso Extraordinário de nº 71.154/71, o Supremo Tribunal Federal foi
provocado a se manifestar sobre a aplicabilidade do prazo prescricional para
cobrança de cheques. O art. 15 da pretérita lei sobre o título de crédito
determinava que seria de cinco anos; o art. 52 da Lei Uniforme de Genebra, por
sua vez, ordenava o prazo de seis meses. Da seguinte forma foi a decisão, de
relatoria do Min. Oswaldo Trigueiro:
LEI
UNIFORME SOBRE O CHEQUE, ADOTADA PELA CONVENÇÃO DE GENEBRA. APROVADA ESSA
CONVENÇÃO PELO CONGRESSO NACIONAL, E REGULARMENTE PROMULGADA, SUAS NORMAS TÊM
APLICAÇÃO IMEDIATA, INCLUSIVE NAQUILO EM QUE MODIFICAREM A LEGISLAÇÃO INTERNA.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. [12]
Assim, passou-se a adotar
uma terceira corrente conforme a qual seria necessária anuência do Poder
Legislativo nacional, embora desnecessária a reprodução da norma. Gize-se que
atualmente o uso do cheque é regulamentado pela Lei nº 7.357, de 2 de setembro de
1985, que dispõe acerca do prazo prescricional de igual forma que a Convenção
de Genebra (seis meses).
A Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados, de 1969, adota a teoria do monismo internacionalista,
quando, em seu artigo 27, dispõe que “uma parte não pode invocar as disposições
de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
O tema no direito pátrio,
contudo, deve ser analisado através do método hermenêutico-concretizador,
proposta por Konrad Hesse, pelo qual deve o intérprete partir da norma
constitucional para a resolução do problema [13].
Para o Supremo Tribunal Federal:
É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária
que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa
para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito
positivo interno brasileiro. [14]
Neste sentido, posicionam-se
as normas de Direito Internacional no ordenamento jurídico brasileiro,
atualmente de forma peculiar.
Os tratados comuns, sem
quaisquer maiores nuances, são incorporados ao ordenamento interno como normas
infraconstitucionais, após negociação, assinatura, ratificação pelo Poder
Executivo autorizado pelo Congresso Nacional e entrada em vigor [15].
Por força do art. 5º, §3º da
Constituição da República Federativa do Brasil, “os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Aqueles que não passarem
pelas formalidades exigidas para serem considerados normas constitucionais,
mas, ainda assim, tratarem de direitos humanos, são considerados, pelo Supremo
Tribunal Federal, normas supralegais.
Senão, veja-se:
Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no
ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel,
pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos
lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da
Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal
dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa
forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante,
seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287
do CC de 1916 e com o DL 911/1969, assim
como em relação ao art. 652 do Novo CC (Lei
10.406/2002). [16]
No caso exposto, o Tribunal
considerou o Pacto de São José da Costa Rica norma supralegal. A consequência
foi o engessamento de toda ordem normativa infraconstitucional, vez que, conquanto
a Constituição da República permita a prisão civil do depositário infiel (art.
5º, inciso LXVII), as demais normas não poderão infringir o tratado. Daí o
chamado controle de convencionalidade,
defendido por Valério Mazzuoli [17].
Ainda, o art. 98 do Código
Tributário Nacional dispõe que “os tratados e as convenções internacionais
revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela
que lhes sobrevenha”. Assim, em matéria tributária, aplica-se igual
sistemática.
Por fim, Paulo Henrique
Gonçalves Portela ressalta uma terceira possibilidade de harmonização da ordem
jurídica interna com a internacional: a primazia da norma mais favorável [18].
[1] BOBBIO, Norberto. Direito e
Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UnB, 1984, p. 88.
[2] KANT, Immanuel. À paz perpétua.
Tradução por Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 33/34.
[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da
metafísica dos costumes e outros escritos. São
Paulo: Martin Claret, 2002. p. 58.
[4] “The doctrine that International Law is part of the law of the land
is a rule of positive law. For that
reason alone, it ought not to be lightly abandoned. From a more general point of view it must be
regarded as a beneficent doctrine inasmuch as it brings into prominence the
fact that the obligations of International Law are, in the last resort, addressed
to individual human beings. To that
extent it serves as yet another explanation of the reason why the general
principles of law and morality must also lie at the basis of rules of
International Law”. OPPENHEIM, Lassa Francis Lawrence. LAUTERPACHT, Sir. Hersch. MACNAIR,
Baron Arnold Duncan. Treatise, I, Seventh Edition. Publisher: Longmans, Green & Co.: London, 1948. Pp. 41-42.
[5] CICCO FILHO, Alceu José. A lei
internacional na ordem jurídica intera: os tratados na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. In Revista
da AGU – Advocacia-Geral da União. Ano XII – Número 35 – Brasília-DF, 2013, p.
15. Disponível em <http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/18004447>. Acesso em 20 de agosto de
2014.
[6] PORTELA, Paulo Henrique
Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de
direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora
Juspodivm, 2014, p. 56.
[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J.Cretella
Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002. p. 144.
[8] KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J.Cretella
Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002. p. 148.
[9] Opera citatum.
[10] Op. Cit.
[11] PEREIRA, Bruno Yepes. Curso de
direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48.
[12] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Recurso Extraordinário nº 71154/PR. Ministro Relator: Oswaldo Trigueiro.
Julgado em agosto de 1971. Disponível em: <http://redir.stj.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=166999>. Acesso em: 20 de agosto de
2014
[13] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. Ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 92.
[14] ADI 1480 MC, Relator (a): Min. Celso
de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, DJ 18-05-2001. PP-00429 EMENT
VOL-02031-02 PP-00213.
[15] PORTELA, Paulo Henrique
Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de
direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora
Juspodivm, 2014, p. 138-143.
[16] RE 466.343, Rel. Min. Cezar
Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de
5-6-2009, com repercussão geral. No mesmo sentido: RE 349.703, Rel. p/ o ac.
Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. Vide:
AI 601.832-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-3-2009, Segunda
Turma, DJE de 3-4-2009; HC 91.361, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em
23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009.
[17] MAZZUOLI, Valério de Oliveira.
Curso de direito internacional público. 7ª Edição. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2013.
[18] PORTELA, Paulo Henrique
Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de
direitos humanos e de direito comunitário. 6ª Edição. Salvador: Editora
Juspodivm, 2014, p. 59.