Em
nosso sistema jurídico há a figura da condição objetiva de punibilidade, trazida
do direito alemão, conforme a teoria de Karl Binding na obra Die Normen und ihre Uebertretungen, Handbuch
des Straferechts.
As
condições objetivas de punibilidade são, conforme a doutrina, causas alheias ao
crime, mas que condicionam o exercício do ius
puniendi. Por tal motivo, vêm da doutrina alemã como die anderweiten Bedingungen der Strafrechte, ou seja, condições
externas de punibilidade, que se encontram fora do tríplice conceito de delito –
ação ou omissão típica, ilícita (antijurídica) e culpável. Ou seja, o crime se consuma, mas o ius puniendi não poderá ser exercido pelo estado até que tal circunstância ocorra.
Seriam,
portanto, condições específicas
e objetivas das quais dependeria a justa causa
da infração penal, e. g., a sentença que decreta a falência ou concede
recuperação judicial ou extrajudicial para os crimes falimentares, previstos na
lei 11.101 de 2005.
Conforme
Welzel,
“a existência ou não de condições de punibilidade não altera em nada o conteúdo
de injusto do fato”.
Neste
sentido, no julgamento do leading case no
país, o Habeas Corpus 81.611, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence,
reconheceu-se também a constituição definitiva do crédito tributário como
condição objetiva de punibilidade para os crimes contra a ordem tributária,
previstos na Lei 8.137 de 1990, conforme se vê:
EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária
(L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do
processo administrativo: falta de justa
causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto
obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.
1. Embora não condicionada a denúncia à representação
da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela
prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de
resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de
lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de
punibilidade ou um elemento normativo de tipo.
2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da
punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento
da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais
eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se
subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar,
perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse
submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.
3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do
contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação
penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.
(STF. HC 81.611. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Plenário, 10.12.2003).
(grifos nossos).
Posteriormente,
editou o Supremo Tribunal Federal a súmula vinculante n.º 24, que dispôs que “não se tipifica crime material contra
a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos i a iv, da lei nº 8.137/90,
antes do lançamento definitivo do tributo”.
Faz-se
importante mencionar, todavia, haver divergência
a respeito da aplicabilidade de tal súmula mesmo aos crimes formais contra a
ordem tributária . Predomina,
contudo, a corrente de que a súmula é aplicável apenas aos delitos formais.
Outrossim,
a redação da súmula gera delicado debate acerca da natureza da efetiva
exigibilidade do crédito tributário para o direito penal: é condição objetiva
de punibilidade ou elemento normativo?
Conforme
Eugenio Pacelli de Oliveira,
incluir a exigibilidade do crédito tributário como elemento normativo do tipo
faria a decadência do crédito impedir a punibilidade do agente. Seria
inadmissível, porém, tamanha interferência no campo penal, fazendo a persecução
penal “depender da presteza dos órgãos fazendários na constituição do crédito” .
Vê-se
que tal confusão se dá inclusive nas próprias decisões do Supremo Tribunal
Federal:
EMENTA:
"HABEAS CORPUS" - DELITO CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA - SONEGAÇÃO FISCAL
- PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIO AINDA EM CURSO - AJUIZAMENTO
PREMATURO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DA AÇÃO PENAL - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA
DE JUSTA CAUSA PARA A VÁLIDA INSTAURAÇÃO DA "PERSECUTIO CRIMINIS" -
INVALIDAÇÃO DO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO DESDE O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA,
INCLUSIVE - PEDIDO DEFERIDO.
-
Tratando-se dos delitos contra a ordem tributária, tipificados no art. 1º da
Lei nº 8.137/90, a instauração da concernente persecução penal depende da
existência de decisão definitiva, proferida em sede de procedimento
administrativo, na qual se haja reconhecido a exigibilidade do crédito
tributário ("an debeatur"), além de definido o respectivo valor
("quantum debeatur"), sob pena de, em inocorrendo essa condição objetiva de punibilidade, não
se legitimar, por ausência de tipicidade
penal, a válida formulação de denúncia pelo Ministério Público.
Precedentes.
-
Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito
tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime
contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em
conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da
conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal,
que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I).
Precedentes.(STF. HC 84092. Relator: Min. Celso de Mello. 2ª Turma,
22.06.2004). (grifos nossos).
Assim,
conclui-se que a efetiva exigibilidade do crédito tributário constitui condição
objetiva de punibilidade, ressaltando-se que, uma vez deflagrada ação penal, o
pagamento do tributo constitui causa de extinção da punibilidade, e o seu
parcelamento questão prejudicial heterogênea, levando o processo penal à
suspensão.
Neste
sentido, para que se dê início persecução penal acerca da prática de crime
tributário, faz-se necessário o “esgotamento da via administrativa” ,
ou seja, faz-se necessário que não haja mais recursos cabíveis no processo
administrativo fiscal (PAF), uma vez que não se justificaria o constrangimento
de uma persecução criminal, bem como a permanente ameaça à liberdade de ir e
vir, sem um mínimo lastro probatório, ou seja, sem a presença da justa causa.
Seria
causa, portanto, de rejeição da denúncia, conforme o art. 395, III, do Código
de Processo Penal.
Calha
ressaltar que a justa causa, além de condição da ação, constitui ainda
pressuposto ou condição do próprio inquérito policial ou procedimento
investigatório presidido pelo parquet.
Por
tal motivo, sempre que levada à tona investigação acerca de crime contra a
ordem tributária ou deflagrada ação penal sem que o crédito (suposto objeto do
crime) haja sido esgotadamente discutido na via administrativa, caber-se-á habeas corpus profilático
com o fito de trancar o processo, judicial ou meramente investigativo.