As normas jurídicas têm em sua estrutura
preceitos e sanções (para alguns autores apenas as normas de conduta), ou uma
proposição hipotética normativa (Rechtsfolge)
[1] e uma
consequência jurídica para a ocorrência da hipótese. No plano dos fatos, é
considerado jurídico aquele fato que se amolda à hipótese normativa, e,
portanto, “repete, no plano dos comportamentos efetivos, aquilo que
genericamente está enunciado no modelo normativo” [2].
O jurista alemão Karl Engisch sintetizou
de forma clara e precisa tal fenômeno, posteriormente chamado “subsunção” [3]:
Assim
como os juízos hipotéticos no sentido lógico são constituídos por conceitos, de
igual modo o são a prótase e apódose de um imperativo jurídico condicional. Por
isso, a ‘hipótese legal’ e a ‘consequência jurídica’ (estatuição), como
elementos constitutivos da regra jurídica, não devem ser confundidos com a
concreta situação da vida e com a consequência jurídica concreta, tal como esta
é proferida ou ditada com base naquela regra, Para maior clareza, chamamos por
isso ‘situação de fato’ ou ‘concreta situação da vida’ à hipótese legal
concretizada. [4]
Assim ocorre no direito tributário, caso
em que o fato jurídico é chamado de fato gerador, a “situação
jurígena que ocorre no mundo real, instaurando relações jurídicas” [5].
Em sua obra ‘Hipótese de Incidência
Tributária’, Geraldo Ataliba introduziu no direito brasileiro a divisão
entre a hipótese de incidência (hipótese objetivamente prevista na lei) e o
fato imponível (fato concreto, ocorrido no mundo das coisas) [6].
No campo do direito
penal temos o mesmo fenômeno, talvez ainda mais visível. O crime é um fato
típico, ilícito (antijurídico) e culpável [7]. Por tanto, é
crime toda ação ou omissão humana (portanto, fato) que se amolda à
hipótese prevista em norma penal [8].
Nesta área, o fato jurídico é intitulado “crime” e a hipótese normativa “tipo
penal”.
Da mesma forma
ocorre em toda e qualquer área do vasto campo do Direito. Há uma hipótese
normativa que, quando subsumível a um fato social, o torna fato jurídico. Por
isso, “os fatos e relações sociais só têm significado jurídico inseridos numa
estrutura normativa” [9].
Havendo o
amoldamento de um fato a uma norma – ressalte-se que norma, regra ou princípio,
não é o mesmo que texto normativo [10]
–, serão produzidos os efeitos por ela estipulados como consequência jurídica,
quase sempre gerando daí relações jurídicas (ressalve-se a defesa de alguns
autores sobre a inocorrência de tal fenômeno com normas de organização [11]).
As relações
jurídicas, por sua vez, são constituídas por sujeitos, fato (que os vincula) e
objeto (“a razão de ser do vínculo constituído” [12]).
Neste contexto surgiram os elementos da ação: partes, pedido e causa de pedir;
bem como as condições da ação: legitimidade ad
causam, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir [13].
Para a doutrina
processualista, contudo, constitui a causa de pedir não apenas o fato jurídico
(fato imponível a um preceito normativo), mas também os fundamentos jurídicos
do pedido, que seriam simplesmente a consequência da subsunção, ou, para Didier
Jr., “a relação jurídica substancial deduzida” [14]
que se criou dos fatos.
Extrai-se tal
interpretação do art. 282, inciso III, do Código de Processo Civil, que prevê
que “a petição inicial indicará (...) o fato e os fundamentos jurídicos do
pedido”.
Portanto, o
fundamento jurídico seria um complemento para a afirmação “à vista dos fatos
(jurídicos), surgiu uma relação (jurídica), que deu ao autor direito a -”. Uma
espécie de introito do pedido (objeto), motivo pelo qual afirma Daniel Amorim
Assumpção Neves que “fundamento jurídico é o liame jurídico entre os fatos e o
pedido” [15].
A relação gerada, a afirmação de uma situação jurídica ativa e uma passiva [16].
Assim, há a causa
de pedir remota (fato jurídico) e a causa de pedir próxima (fundamento jurídico
da demanda, o direito afirmado pelo autor). Gize-se, entretanto, que quanto à
diferença há imensa divergência doutrinária.
Tais caracteres do
direito processual brasileiro, em conjunto com a norma do art. 282, expõem a
adoção, pelo direito pátrio, da teoria da substanciação da causa de pedir, que,
diversamente da teoria da individuação, requer mais do que os fatos jurídicos:
também os fundamentos. É certo que, “hoje, a teoria da individuação se encontra
superada e não guarda mais nenhuma importância jurídica” [17].
A Consolidação das
Leis Trabalhistas, contudo, traz em seu art. 840, §1º, apenas a necessidade de “breve
exposição dos fatos de que resulte o dissídio”. Tal previsão leva parte da
doutrina trabalhista a afirmar que não seria necessário, na inicial de
reclamação trabalhista, a exposição dos fundamentos jurídicos, por força do
princípio do jus postulandi, conforme
se pode ver:
A desnecessidade de apresentar fundamentos jurídicos para o pedido
decorre, especialmente, da lógica que permitia (ainda permite) ao leigo
demandar sem a presença de advogado na Justiça do Trabalho (o que usualmente se
conhece como jus postulandi).
Presume-se que o juiz conheça o direito e diante dos fatos consiga encontrar a
norma jurídica aplicável. [18]
Ocorre, contudo, clara
confusão entre fundamento jurídico e fundamentação legal.
Acerca do tema,
leciona Daniel Amorim Assumpção Neves:
(...) Cumpre não confundir fundamento jurídico, que compõe a causa de
pedir, com fundamento legal, que não compõe a causa de pedir e decididamente
não vincula o juiz em sua decisão, que poderá decidir com outro fundamento
legal, com respeito ao contraditório. Por fundamento legal entende-se a
indicação do artigo de lei no qual se fundamenta a decisão; esse fundamento
legal é dispensável e não vincula o autor ou o juiz, não fazendo parte da causa
de pedir. Fundamento jurídico é o liame jurídico entre os fatos e o pedido
(...).
O juiz é limitado
pela vedação do julgamento ultra ou extra petita. A pergunta ‘a quê eu tenho
direito?’ deve ser respondida na inicial, bem como o ‘porquê’. Afirmar que o
autor não precisa expor os fundamentos jurídicos na inicial é o mesmo que
afirmar que o pedido do autor não precisa decorrer dos fatos, ou mesmo que o autor
não precisar fazer pedido.
Ainda, ensinam Nery
Jr. e Nery da seguinte maneira:
Não há necessidade de o autor indicar a lei ou o artigo de lei em que se
encontra baseado o pedido, pois o juiz conhece o direito (iura novit curia). Basta que o autor dê concretamente os
fundamentos de fato, para que o juiz possa dar-lhe o direito (da mihi factum, dabo tibi ius). [19]
E, por fim, Didier
Jr.:
Não se deve confundir fundamento jurídico (...), com fundamentação
legal, essa dispensável. O magistrado está limitado, na sua decisão, pelos
fatos jurídicos e pelo pedido formulados – não o está, porém, ao dispositivo
legal invocado pelo demandante, pois é sua a tarefa de verificar se houve a
subsunção do fato à norma (ou seja, verificar se houve incidência). [20]
Portanto, é lícito
afirmar que não há a referida diferença quanto à formulação da petição inicial
no processo civil e trabalhista, apontada por algumas doutrinas. Em ambos deve
haver fatos e fundamentos jurídicos, e em ambos é dispensável a fundamentação
legal.
[1] REALE, Miguel. Lições
preliminares de Direito. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 100.
[2] Idem, p. 201.
[3] ÁVILA, Humberto Bergmann.
Subsunção e concreção na aplicação do Direito. Livro comemorativo do
cinqüentenário da PUC-RS, Porto Alegre, Edipuc, 1997, pág. 413 e ss.
[4] ENGISH, Karl. Introdução ao
pensamento jurídico. 3. ed. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1972, p. 43.
[5] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro.
Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 586.
[6] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de
incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 2001.
[7] PRADO, Luiz Regis. Curso de
direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 12. Ed. ver.
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 808.
[8] PRADO, Luiz Regis. Norma penal
como norma de conduta. Revista dos Tribunais Online. Ciências Penais, vol. 12. Thomson
Reuters, 2010, p. 231.
[9] REALE, Miguel. Opera Citatum, p. 215.
[10] MÜLLER, Friedrich. Métodos de
trabalho do direito constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999.
[11] REALE, Miguel. Op. Cit., p. 98.
[12] REALE, Miguel. Op. Cit., p. 217-218.
[13] DIDIER JR., Fredie. Curso de
direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
conhecimento. 16.ª Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014,
p. 220.
[14] DIDIER JR., Fredie. Op. Cit.,
p. 450.
[15] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual
de processo civil. 6. Ed. Rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 139.
[16] DIDIER JR., Fredie. Op. Cit.
[17] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa
Maria de Andrade. Código de processo civil comentado: e legislação
extravagante. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014,
p. 683.
[18] PAULA, Gáudio R. de. CHAGAS,
Daniel de Matos Sampaio. Processo do trabalho. Editora Jus Podivm, 2014, p.
116.
[19] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa
Maria de Andrade. Op. Cit., p. 684.
[20] DIDIER JR., Fredie. Op. Cit.,
p. 449.