O orçamento, a priori, afigura-se como o ato por meio do qual o legislador “prevê
e autoriza” o Poder Executivo, “por certo período e em pormenor, as despesas
destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política
econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em
lei”, conforme o conceito de Aliomar Baleeiro [1].
Durante a Antiguidade, no Ocidente, o
orçamento público confundia-se com aquele do soberano. Com o lento processo de
erosão do regime absolutista e a queda do despotismo, o liberalismo político e
filosófico começou a tomar lugar, exigindo cada vez mais um Estado que visasse
tão somente ao bem comum. Consoante a doutrina de Regis Fernandes de Oliveira,
os primeiros indícios do instituto na história ocidental se deram com a
aclamada Magna Charta Libertatum
(1215), bem como, posteriormente, pela Petition
of Rights (1628), pela Bill of Rights
(1689) e pelas revoluções francesa e americana, com seus ápices em 1789 e
1787, respectivamente.
No Brasil, foi a “Constituição dos
Estados Unidos do Brasil” (1937) o documento que deu ao orçamento pátrio a
feição formalmente próxima à atual.
Entretanto, nem o conceito e tampouco o
conteúdo do orçamento restaram incólumes ao pós-positivismo.
O advento do constitucionalismo
contemporâneo, após a Segunda Guerra Mundial, impôs que toda atuação estatal se
voltasse, interna e externamente, para a defesa da dignidade humana, campanha
inviável sem uma devida atuação financeira do Estado.
Neste sentido, afirma José Casalta
Nabais que direito algum é dádiva divina, fruto da natureza ou autorrealizável,
razão pela qual todo direito fundamental – mesmo aqueles de primeira geração –
implica custos para sua concretização [2]. Exsurge
neste ambiente uma dimensão financeira dos direitos fundamentais [3].
Assim, deixa o orçamento a antiga feição
de peça meramente técnica ou contábil (projeção de despesas etc.) para assumir caráter político,
voltado para a redução das desigualdades e efetivação dos direitos humanos, por
meio de suas inevitáveis – mas agora dirigidas – repercussões econômicas e
sociais, surgindo o chamado “orçamento programa” [4].
Pode ser observado pelos prismas
financeiro, político e econômico.
O ângulo financeiro é aquele que se atém
à técnica orçamentária, considerando unicamente seu caráter contábil.
Do ponto de vista político, vê-se que o
orçamento concretiza o princípio da tripartição dos poderes, ao tempo em que é
por este guiado. Não há independência real se não houver autonomia financeira. Simultaneamente,
o próprio trâmite do orçamento põe em prática o sistema dos freios e
contrapesos.
Adiante, do ângulo econômico se busca
verificar o necessário equilíbrio entre receitas e despesas.
As chamadas leis orçamentárias, ou tipos
de orçamento, são o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei
Orçamentária Anual, todas de iniciativa do Poder Executivo.
O Plano Plurianual é norma com vigência
de quatro anos que estabelece diretrizes acerca de despesas de capital e
despesas de prestação continuada, e tem por uso servir de padrão para o planejamento
das ações do governo, vinculando a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei
Orçamentária Anual. Apenas trata de
despesas que tenham a finalidade de aumentar o patrimônio líquido da
Administração ou cuja execução se
estenda por mais de um exercício financeiro (contratos de obras etc.). É o mais abstrato dos tipos.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias deve
trazer as prioridades para o exercício financeiro subsequente, inclusive as
despesas de capital. Vincula a Lei Orçamentária Anual, e deve conter um Anexo
de Riscos Fiscais, bem como seu projeto deve conter um Anexo de Metas Fiscais.
A Lei Orçamentária Anual, por sua vez,
busca estabelecer, tecnicamente, as receitas e despesas para o exercício
seguinte. É o mais concreto dos tipos. Subdivide-se nas chamadas “espécies de
orçamento”: orçamento fiscal; orçamento de investimento; e orçamento da
Seguridade Social. Deve ser compatível com o Plano Plurianual e com a Lei de
Diretrizes Orçamentárias.
O instituto do orçamento é ainda guiado
por alguns princípios, que, diversamente das regras sobre o tema, deverão ser
aplicados pelos métodos do sopesamento [5] e
ponderação [6]
pelo intérprete.
O princípio do equilíbrio orçamentário
exige a igualdade numérica entre as entradas e saídas, com o escopo de evitar
eventual déficit ou superávit.
O princípio da universalidade impõe que
todas as receitas e despesas constem da Lei Orçamentária anual em seus valores
brutos (art. 6º da Lei nº 4.320/64), enquanto o princípio da unidade ordena
que, por ente da Federação, haja um único orçamento, que deverá ser anual, por
força do princípio da anualidade. Dentre os tipos de lei orçamentária, apenas o
Plano Plurianual não obedece ao prazo de um ano, porquanto sua vigência
perdurará por quatro exercícios financeiros.
O princípio da exclusividade, por sua
vez, veda que haja, na Lei Orçamentária, Anual, dispositivo estranho à previsão
de receita e fixação de despesa, ressalvando os casos de autorização para
abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito.
Confirmando a transformação conceitual
explicitada retro, exsurge o princípio da programação, pelo qual cabe ao
orçamento transcender seu aspecto meramente técnico e buscar efetivar objetivos
e metas da Constituição.
Elenca ainda a doutrina o princípio da
não afetação, extraído do art. 167, inciso IV da Constituição da República
Federativa do Brasil. Este veda, como regra, que a receita de impostos seja
vinculada a órgão, fundo ou despesa, inclusive por força do caráter uti universi do tributo. Tal norma, que,
repise-se, aplica-se tão somente aos impostos, comporta determinadas exceções,
previstas pela própria Constituição: repartição de receita tributária
decorrente de impostos (arts. 158 e 159); recursos para ações e serviços públicos
de saúde; manutenção e desenvolvimento do ensino; realização de atividades da
Administração Tributária; e prestação de garantias às operações de crédito por
antecipação de receita.
Há embate doutrinário acerca da execução
do orçamento, concernente ao seu enquadramento como atividade discricionária ou
vinculada. Para viabilizar reflexão sobre o tema, impende analisar a teoria da
repartição da funções do Estado.
Karl Loewenstein, constitucionalista
alemão, traz que as funções do Estado podem ser subdivididas em decisão
política fundamental (die politische
Grundentscheidung); execução da decisão política fundamental (die Ausführung der politischen
Grundentscheidung); e controle político (die politische Kontrolle).
Utilizando-se de tal classificação (die neue Dreiteilung des Staatsfunktionen),
Loewenstein dá relevo ao fato de que cabe à Administração Pública (pela função
administrativa) apenas executar a decisão política tomada pelo Poder Legislativo,
in casu, o orçamento. Assim, para
Regis Fernandes de Oliveira, a execução do orçamento deve ser atividade
vinculada [7],
concluindo o autor com o pensamento de Hely Lopes de Meirelles de que “executar
é cumprir o determinado”.
Por outro lado, para Tathiane
Piscitelli, o orçamento – leis orçamentárias – ostenta natureza autorizativa, e
não impositiva [8].
Neste sentido foram editadas as Emendas
Constitucionais nº 27, 42, 56 e 68, instituindo e prorrogando a vigência de
normas que desvinculam de qualquer destinação a quantia de 20% (vinte por
cento) da arrecadação de impostos, contribuições sociais e de intervenção no
domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados até a data
prevista, bem como seus adicionais e acréscimos legais (art. 76 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias), relativamente ao orçamento federal.
Por força da Emenda Constitucional nº
68/2011, contudo, o percentual de 20% é nulo para efeito de cálculo dos
recursos destinados ao ensino pelo art. 212 da Constituição da República
(dezoito por cento para a União).
Para parte da doutrina tais emendas
estão corretas, porquanto concedem mais liberdade para que o Poder Executivo
aja em meio à dinâmica dos fatos. Para outra parte, no entanto, afigura medida
incabível e desafiadora as funções dos poderes, de maneira que caberia ao
Executivo unicamente executar o que lhe foi determinado.
[1] BALEEIRO, Aliomar. Uma
Introdução à Ciência das Finanças. 15ª ed. revista e atualizada por Dejalma de
Campos, Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 411.
[2] NABAIS, José Casalta. Por um
estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005,
p. 38.
[3] SOUZA, Jorge Munhós de. A
dimensão financeira dos direitos fundamentais. In Temas aprofundados do
Ministério Público Federal. 2. Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora
Juspodivm, 2013, p. 103.
[4] SILVA, José Afonso da.
Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: RT, 1973, p. 104.
[5] DWORKIN, Ronald. Taking Righs Seriously. 6. imp. Londres, Duckworth,
1991, p. 26. Idem, Is law a system of rules? In: The Philosophy of Law, ed. by
R. M. Dworkin, Oxford, Oxford University Press, 1977, pág. 26.
[6] ÁVILA, Humberto.
"NEOCONSTITUCIONALISMO": ENTRE A "CIÊNCIA DO DIREITO" E O
"DIREITO DA CIÊNCIA". Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE),
Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17,
janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 17 de maio de
2014, p. 9.
[7] OLIVEIRA, Regis Fernandes de.
Curso de direito financeiro. 4. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2011, ps. 380-381.
[8] PISCITELLI, Tathiane. Direito
financeiro esquematizado. 4. Ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
São Paulo: Método, 2014, ps. 58-59.
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