"Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim".
Crítica da razão prática, Kant.

Tuesday 23 September 2014

ORÇAMENTO: GESTÃO E VINCULAÇÃO DE RECEITAS

O orçamento, a priori, afigura-se como o ato por meio do qual o legislador “prevê e autoriza” o Poder Executivo, “por certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei”, conforme o conceito de Aliomar Baleeiro [1].
Durante a Antiguidade, no Ocidente, o orçamento público confundia-se com aquele do soberano. Com o lento processo de erosão do regime absolutista e a queda do despotismo, o liberalismo político e filosófico começou a tomar lugar, exigindo cada vez mais um Estado que visasse tão somente ao bem comum. Consoante a doutrina de Regis Fernandes de Oliveira, os primeiros indícios do instituto na história ocidental se deram com a aclamada Magna Charta Libertatum (1215), bem como, posteriormente, pela Petition of Rights (1628), pela Bill of Rights (1689) e pelas revoluções francesa e americana, com seus ápices em 1789 e 1787, respectivamente.
No Brasil, foi a “Constituição dos Estados Unidos do Brasil” (1937) o documento que deu ao orçamento pátrio a feição formalmente próxima à atual.
Entretanto, nem o conceito e tampouco o conteúdo do orçamento restaram incólumes ao pós-positivismo.
O advento do constitucionalismo contemporâneo, após a Segunda Guerra Mundial, impôs que toda atuação estatal se voltasse, interna e externamente, para a defesa da dignidade humana, campanha inviável sem uma devida atuação financeira do Estado.
Neste sentido, afirma José Casalta Nabais que direito algum é dádiva divina, fruto da natureza ou autorrealizável, razão pela qual todo direito fundamental – mesmo aqueles de primeira geração – implica custos para sua concretização [2]. Exsurge neste ambiente uma dimensão financeira dos direitos fundamentais [3].
Assim, deixa o orçamento a antiga feição de peça meramente técnica ou contábil (projeção de despesas etc.) para assumir caráter político, voltado para a redução das desigualdades e efetivação dos direitos humanos, por meio de suas inevitáveis – mas agora dirigidas – repercussões econômicas e sociais, surgindo o chamado “orçamento programa” [4].
Pode ser observado pelos prismas financeiro, político e econômico.
O ângulo financeiro é aquele que se atém à técnica orçamentária, considerando unicamente seu caráter contábil.
Do ponto de vista político, vê-se que o orçamento concretiza o princípio da tripartição dos poderes, ao tempo em que é por este guiado. Não há independência real se não houver autonomia financeira. Simultaneamente, o próprio trâmite do orçamento põe em prática o sistema dos freios e contrapesos.
Adiante, do ângulo econômico se busca verificar o necessário equilíbrio entre receitas e despesas.
As chamadas leis orçamentárias, ou tipos de orçamento, são o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual, todas de iniciativa do Poder Executivo.
O Plano Plurianual é norma com vigência de quatro anos que estabelece diretrizes acerca de despesas de capital e despesas de prestação continuada, e tem por uso servir de padrão para o planejamento das ações do governo, vinculando a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Apenas trata de despesas que tenham a finalidade de aumentar o patrimônio líquido da Administração ou cuja execução se estenda por mais de um exercício financeiro (contratos de obras etc.). É o mais abstrato dos tipos.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias deve trazer as prioridades para o exercício financeiro subsequente, inclusive as despesas de capital. Vincula a Lei Orçamentária Anual, e deve conter um Anexo de Riscos Fiscais, bem como seu projeto deve conter um Anexo de Metas Fiscais.
A Lei Orçamentária Anual, por sua vez, busca estabelecer, tecnicamente, as receitas e despesas para o exercício seguinte. É o mais concreto dos tipos. Subdivide-se nas chamadas “espécies de orçamento”: orçamento fiscal; orçamento de investimento; e orçamento da Seguridade Social. Deve ser compatível com o Plano Plurianual e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.
O instituto do orçamento é ainda guiado por alguns princípios, que, diversamente das regras sobre o tema, deverão ser aplicados pelos métodos do sopesamento [5] e ponderação [6] pelo intérprete.
O princípio do equilíbrio orçamentário exige a igualdade numérica entre as entradas e saídas, com o escopo de evitar eventual déficit ou superávit.
O princípio da universalidade impõe que todas as receitas e despesas constem da Lei Orçamentária anual em seus valores brutos (art. 6º da Lei nº 4.320/64), enquanto o princípio da unidade ordena que, por ente da Federação, haja um único orçamento, que deverá ser anual, por força do princípio da anualidade. Dentre os tipos de lei orçamentária, apenas o Plano Plurianual não obedece ao prazo de um ano, porquanto sua vigência perdurará por quatro exercícios financeiros.
O princípio da exclusividade, por sua vez, veda que haja, na Lei Orçamentária, Anual, dispositivo estranho à previsão de receita e fixação de despesa, ressalvando os casos de autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito.
Confirmando a transformação conceitual explicitada retro, exsurge o princípio da programação, pelo qual cabe ao orçamento transcender seu aspecto meramente técnico e buscar efetivar objetivos e metas da Constituição.
Elenca ainda a doutrina o princípio da não afetação, extraído do art. 167, inciso IV da Constituição da República Federativa do Brasil. Este veda, como regra, que a receita de impostos seja vinculada a órgão, fundo ou despesa, inclusive por força do caráter uti universi do tributo. Tal norma, que, repise-se, aplica-se tão somente aos impostos, comporta determinadas exceções, previstas pela própria Constituição: repartição de receita tributária decorrente de impostos (arts. 158 e 159); recursos para ações e serviços públicos de saúde; manutenção e desenvolvimento do ensino; realização de atividades da Administração Tributária; e prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita.
Há embate doutrinário acerca da execução do orçamento, concernente ao seu enquadramento como atividade discricionária ou vinculada. Para viabilizar reflexão sobre o tema, impende analisar a teoria da repartição da funções do Estado.
Karl Loewenstein, constitucionalista alemão, traz que as funções do Estado podem ser subdivididas em decisão política fundamental (die politische Grundentscheidung); execução da decisão política fundamental (die Ausführung der politischen Grundentscheidung); e controle político (die politische Kontrolle).
Utilizando-se de tal classificação (die neue Dreiteilung des Staatsfunktionen), Loewenstein dá relevo ao fato de que cabe à Administração Pública (pela função administrativa) apenas executar a decisão política tomada pelo Poder Legislativo, in casu, o orçamento. Assim, para Regis Fernandes de Oliveira, a execução do orçamento deve ser atividade vinculada [7], concluindo o autor com o pensamento de Hely Lopes de Meirelles de que “executar é cumprir o determinado”.
Por outro lado, para Tathiane Piscitelli, o orçamento – leis orçamentárias – ostenta natureza autorizativa, e não impositiva [8].
Neste sentido foram editadas as Emendas Constitucionais nº 27, 42, 56 e 68, instituindo e prorrogando a vigência de normas que desvinculam de qualquer destinação a quantia de 20% (vinte por cento) da arrecadação de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados até a data prevista, bem como seus adicionais e acréscimos legais (art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), relativamente ao orçamento federal.
Por força da Emenda Constitucional nº 68/2011, contudo, o percentual de 20% é nulo para efeito de cálculo dos recursos destinados ao ensino pelo art. 212 da Constituição da República (dezoito por cento para a União).
Para parte da doutrina tais emendas estão corretas, porquanto concedem mais liberdade para que o Poder Executivo aja em meio à dinâmica dos fatos. Para outra parte, no entanto, afigura medida incabível e desafiadora as funções dos poderes, de maneira que caberia ao Executivo unicamente executar o que lhe foi determinado.



[1] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 15ª ed. revista e atualizada por Dejalma de Campos, Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 411.
[2] NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 38.
[3] SOUZA, Jorge Munhós de. A dimensão financeira dos direitos fundamentais. In Temas aprofundados do Ministério Público Federal. 2. Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2013, p. 103.
[4] SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: RT, 1973, p. 104.
[5] DWORKIN, Ronald. Taking Righs Seriously. 6. imp. Londres, Duckworth, 1991, p. 26. Idem, Is law a system of rules? In: The Philosophy of Law, ed. by R. M. Dworkin, Oxford, Oxford University Press, 1977, pág. 26.
[6] ÁVILA, Humberto. "NEOCONSTITUCIONALISMO": ENTRE A "CIÊNCIA DO DIREITO" E O "DIREITO DA CIÊNCIA". Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 17 de maio de 2014, p. 9.
[7] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 4. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, ps. 380-381.
[8] PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4. Ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2014, ps. 58-59.

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