"Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim".
Crítica da razão prática, Kant.

Friday 4 July 2014

INFRAÇÕES DO EMPREGADO E DO EMPREGADOR


Jurandi Ferreira de S. Neto.

A relação trabalhista se origina de um negócio jurídico. Contudo, é negócio sui generis, porquanto caminha tênue sobre a fronteira de direitos indisponíveis. Por conta de seu conteúdo, teve tratamento reservado e específico pela Constituição da República Federativa do Brasil, que se preocupou em gravar tais relações de cláusulas cogentes, bem como proporcionar estruturas estatais específicas para sua tutela.
Já no art. 1.º, inciso IV da Constituição da República, cristalizou o constituinte originário como fundamento da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Ao fazê-lo, buscou equilibrar motivações oriundas da política liberalista com os ideais sociais, consagrando um Estado Social, ou um elemento social de um Estado Constitucional Democrático [1].
Em que pese seu caráter ímpar, a relação não deixa de conter os traços de um negócio jurídico – dentre eles a bilateralidade [2]. Como contrato, possui força obrigatória [3], embora adequada ao contexto. Assim, é possível que haja infrações contratuais por ambas as partes.
Infração, do latim infractio ou infrigere, é aquele fato que viola “disposição de lei, onde há cominação de pena” [4]. Pode ser por parte do empregador ou do empregado. Poderá gerar advertência, suspensão ou rescisão do contrato por justa causa.
Quanto àquelas infrações cometidas pelo empregado, vê-se que o art. 2.º da Consolidação das Leis Trabalhistas concede ao empregador o chamado poder diretivo [5].
Para a doutrina, o poder diretivo do empregador de subdivide em três: poder de fiscalização [6] ou controle [7], poder de organização e poder disciplinar.
O poder de fiscalização ou controle é aquele que possui o empregador para acompanhar as atividades do empregado durante o horário de trabalho. O poder de organização é aquele pelo qual tem o empregador a prerrogativa de determinar o modus operandi de sua atividade, direcionando e organizando o trabalho, inclusive através de regulamentos.
O poder disciplinar, por fim, é aquele que toca o assunto tratado. Acerca deste há quatro diferente correntes: a negativista, a civilista, a penalista e a administrativista.
A teoria negativista nega a possibilidade de o empregador aplicar sanções, sob o argumento de que o jus puniendi seria exclusivo do Estado. A corrente foi facilmente derrubada, haja vista que diversas outras relações que, sem a presença do Estado, demonstram certo poder de disciplina, como, e.g., o poder familiar do direito de família. Ademais, possui o jus puniendi objeto deveras mais abrangente do que o poder disciplinar.
A civilista assemelha o poder disciplinar à cláusula penal do direito das obrigações, mas não pode ser aceita porquanto possuem naturezas diferentes: uma de cunho patrimonial e outra com caráter estritamente moral e pedagógico [8].
A penalista equipara a função do poder disciplinar àquela das penas criminais, afirmando que ambas existem para organizar a sociedade. Contudo, vê-se que as penas criminais, na esteira das teorias relativas [9], possuem como função a prevenção geral e a prevenção específica, enquanto os efeitos daquela advinda do poder disciplinar alcançam apenas os empregados daquela determinada empresa.
Outro fato importante seria o princípio da legalidade, que, no direito penal exigiria também a prévia cominação legal (art. 5.º, inciso XXXIX, CRFB), enquanto no direito do trabalho não.
Por fim, a teoria administrativista explica que a empresa seria uma instituição, “equiparando-se ao ente público” [10]. Portanto, o empregador tem o poder e a responsabilidade de manter a ordem em seu âmbito.
Insta mencionar a teoria da eficácia diagonal dos direitos fundamentais [11], extensão da teoria da eficácia horizontal, que defende que a relação empregatícia, por funcionar de forma ímpar, merece também cautela ímpar, vez que é ambiente amplamente fértil para violações a direitos fundamentais. Neste sentido, cabe ao empregador ter o máximo de zelo e razoabilidade no uso do poder diretivo, mais enfaticamente o disciplinar.
Deve o empregador valer-se notadamente da proporcionalidade (oriunda do direito germânico, Verhaltnismäßigkeitsgrundsatz[12]), podendo o Poder Judiciário aferir sua aplicação em sua base tríplice: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito [13]. O ideal é que as sanções sejam aplicadas gradativamente: advertência, suspensão e só então, sendo o caso, rescisão por justa causa.
Com fins de fornecer meios para o exercício do poder disciplinar, a Consolidação das Leis Trabalhistas trouxe dois tipos de punição: a suspensão, que não poderá ser superior a 30 (trinta) dias sob pena de ser causa de rescisão injusta do contrato de trabalho (art. 474, CLT); e, em caso extremo, a rescisão do contrato de trabalho com justa causa (art. 482, CLT).
O costume, no entanto, criou a advertência, que, por ser mais benéfica para o empregado, foi amplamente aceita pela comunidade jurídica.
Por via de exceção se aceita, ainda, a pena pecuniária aos atletas profissionais.
As infrações do trabalhador estão principalmente previstas no art. 482, da Consolidação das Leis Trabalhistas, havendo, contudo, infrações em normas específicas. Verbi gratia, os empregados aprendizes, nos termos do art. 433, I e III da Consolidação das Leis Trabalhistas, poderão ser punidos de forma específica pelo “desempenho insuficiente ou inadaptação” ou “ausência injustificada à escola que implique perda do ano letivo” [14].
Igualmente, havia a (no mínimo) estranha exigência do art. 508 da Consolidação das Leis Trabalhistas que considerava como infração a “abstenção contumaz quanto ao pagamento de dívidas legalmente exigíveis” para empregados bancários. Entretanto, tal artigo foi revogado pela Lei n.º 12.347 de 2010.
Por fim, a Consolidação das Leis Trabalhistas, em seu art. 240, parágrafo único, considera falta grave para os ferroviários que se negarem a prestar trabalho quando o horário de trabalho for dilatado em razão de urgência ou acidente.
Há duas teorias quanto às punições: a teoria genérica e a taxativa.
A norma jurídica de conduta, conforme a doutrina [15], é composta por um preceptum iuris (preceito jurídico) e um sanctio iuris (sanção jurídica). No direito do trabalho, o preceptum iuris figura por vezes como cláusula geral [16], cabendo ao empregador completá-la a partir de sua compreensão de realidade. Por tal motivo, é amplamente possível o controle judicial do poder disciplinar.
A teoria genérica dispensa a previsão legal da preceptum iuris, de forma que caberia ao empregador avaliar livremente se conviria ou não punir determinada conduta. Ora, tal compreensão seria flagrantemente contrária à necessidade de segurança jurídica – a norma de conduta serve para orientar o comportamento. Como poderia um indivíduo orientar a sua conduta sem saber como deve se portar?
A teoria taxativa, por sua vez, obedece ao princípio da legalidade – nullum crímen, nulla poena sine lege (art. 5.º, XXXIX, CRFB). Esta é a corrente aceita pelo nosso ordenamento.
Sergio Pinto Martins traz, para a caracterização de justa causa (para advertência, suspensão ou rescisão do contrato) a exigência de elementos objetivos e subjetivos [17]. Os subjetivos são aqueles associados à culpa lato sensu do empregado (culpa ou dolo) quanto à conduta praticada.
Os elementos objetivos, por sua vez, são diversos: tipo legal, gravidade do ato, nexo entre fato e punição, proporcionalidade e imediação da punição (em nome da segurança jurídica). Não poderá o empregador, ainda, punir em bis in idem, ou fazê-lo por ato irrelevante para o serviço.
Conforme a Súmula 14 do TST, poderá haver culpa recíproca (infrações simultâneas do empregado e empregador) pelo fato. Neste caso, quando a justa causa houver sido a priori por fato do empregador e ficar comprovada, na verdade, culpa recíproca, reduzir-se-á à metade a indenização devida ao empregado (art. 484, CLT), bem como o valor do aviso-prévio, das férias proporcionais e da parte a ser paga do décimo terceiro salário.
Conforme o art. 482 da Consolidação das Leis Trabalhistas, constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
a) ato de improbidade, termo advindo do latim improbitas, oposto àquilo que é probo, confiável, de boa intenção. Seriam atos necessariamente dolosos e ofensivos ao serviço e ao empregador;
b) incontinência de conduta, entendida pela doutrina como ausência de pudor, ou quando houver prática de assédios libidinosos etc.
c) mau procedimento, preceito utilizado residualmente, ou seja, na ausência de outro mais específico, podendo ser assim considerada, e.g., a conduta ofensiva aos deveres colaterais da boa-fé;
d) negociação habitual, conduta ofensiva à cláusula de não concorrência [18], pela qual não pode o empregado se utilizar de negociações habituais que resultem em concorrência desleal para seu empregador;
e) condenação criminal transitada em julgado contra o empregado, e apenas caso não tenha havido suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal);
f) desídia, comportamento habitual, no desempenho das respectivas funções, pelo qual o empregado se mostra indiferente para com a consequência de suas omissões, surgindo no cotidiano através de pequenas faltas reiteradas;
g) embriaguez habitual ou em serviço, vez que cabe ao empregador manter a ordem no serviço, bem como manter o ambiente de trabalho em harmonia. Neste sentido, vê-se que a embriagues deve ser habitual, e nunca fortuita; ou, mesmo uma vez isolada, caso ocorra durante o serviço;
h) violação de segredo da empresa, pois é violação da fidúcia inerente ao contrato de emprego;
i) indisciplina, quando houver violação a regras gerais, relativas ao poder de organização do empregador;
j) insubordinação, quando houver descumprimento de ordens pessoais e imediatas;
j) abandono de emprego, que, em razão do princípio da continuidade da relação de emprego, apenas ficará configurado com a comprovação de dois elementos: quantidade de dias e animus abandonandi, de procedência objetiva e subjetiva, respectivamente. A Súmula 32 do Tribunal Superior do Trabalho expõe o entendimento de que se presume “o abandono de emprego se o trabalhador não retornar ao serviço no prazo de 30 (trinta) dias após a cessação do benefício previdencário nem justificar o motivo de não o fazer”. É de presunção relativa que se trata. Poderá ser configurado o abandono com prazo inferior, porém, com prova idônea do animus abandonandi;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama de qualquer pessoa, salvo se ocorrer em legítima defesa própria ou de terceiro;
l) ofensas físicas em serviço, salvo se ocorrer em legítima defesa própria ou de terceiro;
m) prática constante de jogos de azar, de qualquer tipo, com habitualidade.
Por fim, o parágrafo único do art. 482 dispões que constitui “justa causa para dispensa de empregado a prática, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos atentatórios à segurança nacional”. Não é difícil observar a mens legis do dispositivo. Ele foi incluído pelo Decreto-lei nº 3 de 1966 – pouco após o golpe militar de 1964.
O objetivo claro da norma, bem como de muitas outras espalhadas pelo ordenamento durante os períodos da era varguista e do regime militar e que, en passant, apesar das reformas ainda maculam o direito brasileiro em várias áreas (Código Penal de 1940, Código de Processo Penal de 1941), era evitar a disseminação de ideais comunistas ou quaisquer outros que ameaçassem o regime ditatorial.
Quando a infração for praticada não pelo empregado, mas pelo empregador, será caso para rescisão indireta do contrato de emprego. Para que não se considere abandono de emprego, as razões da rescisão deverão ser comunicadas ao empregador.
Deve o empregado se desvincular o quanto antes do serviço, sob pena de restar a conclusão de que a causa não foi suficiente rescisão do contrato, bem como de que tenha havido perdão. Para verificar a justa causa deve ajuizar ação na Justiça do Trabalho, requerendo a rescisão.
Os casos de rescisão indireta do contrato de trabalho, ou hipóteses de infraçãopor parte do empregador estão no art. 483 da Consolidação das Leis Trabalhistas, que prevê que o empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato, cabendo in casu interpretação extensiva (expansiva ou em sentido amplo);
b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo, ou seja, abuso do poder diretivo;
c) correr perigo manifesto de mal considerável, quando houver sujeição do empregado a situações que coloquem em risco sua integridade física ou psíquica;
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato. Considera-se inadimplida a obrigação de prestar o pagamento quando retardada esta por três meses ou mais. Não se considera descumprimento de obrigação do contrato o não depósito do FGTS, porquanto trata-se de obrigação legal;
e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama, como, e.g., assédio sexual [19];
f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.
Tem o empregado a faculdade de suspender a prestação dos serviços, ou rescindir o contrato, quando for sujeito desempenhar obrigações legais incompatíveis com a continuação do serviço.
No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho.
Tratando-se de menor, poderá este pleitear a rescisão indireta por justa causa do quando o empregador “não tomar as medidas possíveis e recomendadas pela autoridade competente para que o menor mude de função”, consoante o parágrafo único do art. 407 da CLT.
Cuidando-se o caso de justa causa pelo inadimplemento das obrigações contratuais ou pela redução de trabalho que resulte redução salarial, o empregado poderá permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo, enquanto pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações.








[1] STERN, Klaus. SACHS, Michael. DIETLEIN, Johannes. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland Bd. IV/1. Halbband: Die einzelnen Grundrechte: Der Schutz und die freiheitliche Entfaltung des Individuums. München: Verlag C.H. Beck, 2006.
[2] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 204.
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 390.
[4] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27. Ed. Rio de Janeiro, 2008. p. 741.
[5] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 3. Ed. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 202. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 27. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 2016.
[6] MARTINEZ, Luciano. Op. Cit.
[7] MARTINS, Sergio Pinto. Op. Cit.
[8] Op. Cit., p. 219.
[9] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1.º a 120. 12. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2013. p. 629-634.
[10] MARTINS, Sergio Pinto. Op. Cit.
[11] “Os direitos fundamentais, em sua eficácia horizontal, ou, usando a moderna concepção de Sérgio Gamonal, em sua eficácia diagonal (Gamonal Contreras, Sergio. Cidadania na empresa e eficácia diagonal dos direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2011), vinculam não apenas o Estado, mas também os particulares” (TST. RR n. 7894-78.2010.5.12.0014/Data de Julgamento: 28/08/2013).
[12] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main, 1994. p. 93.
[13] ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, n.º 4, julho, 2001. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 22 de maio de 2014. p. 32.
[14] Art. 433. O contrato de aprendizagem extinguir-se-á no seu termo ou quando o aprendiz completar 24 (vinte e quatro) anos, ressalvada a hipótese prevista no § 5o do art. 428 desta Consolidação, ou ainda antecipadamente nas seguintes hipóteses: I – desempenho insuficiente ou inadaptação do aprendiz; II – falta disciplinar grave; III – ausência injustificada à escola que implique perda do ano letivo; ou IV – a pedido do aprendiz.
[15] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 101-102.
[16] DIDIER JR., Fredie. Cláusulas gerais processuais. Disponível na internet: < www.frediedidier.com.br>. Acesso em 22 de maio de 2014.
[17] MARTINS, Sergio Pinto. Op. Cit. p. 379
[18] MARTINS, Sergio Pinto. Op. Cit. p. 383.
[19] MARTINS, Sergio Pinto. Op. Cit. p. 398.

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