Jurandi Ferreira de Souza Neto
A princípio, cabe memorar que, conforme
a Constituição da República Federativa do Brasil, “a assistência social será
prestada a quem dela necessitar”.
Vê-se que a assistência social, no Brasil,
tem por escopo proporcionar aos necessitados o acesso a uma vida minimamente
digna – um Estado fundamentado no objetivo de “construir uma sociedade livre,
justa e solidária” (art. 3º, I, CRFB) não poderia fugir a tal dever.
Portanto, na busca por proporcionar uma
vida minimamente digna, há que se falar na proteção de um patrimônio mínimo que
garanta sua qualidade. Para o civilista Flávio Tartuce, “deve-se assegurar à
pessoa um mínimo de direitos patrimoniais, para que viva com dignidade”[1].
Referida noção já é protegida em nosso
sistema jurídico por inúmeros meios. E.g., a nulidade da doação universal (art.
548, Código Civil), a proteção do bem de família (Lei n.º 8.009/1990), a proteção
do direito à moradia (art. 6º, CRFB), a proteção do imóvel em que reside pessoa
solteira, separada ou viúva (Súmula 364, STJ) etc.
Para Luiz Edson Fachin, a proteção do
patrimônio mínimo é manifestação do princípio da dignidade humana (art. 1º,
III, CRFB), norma da qual decorre todo o ordenamento[2]:
A
dignidade da pessoa é princípio fundamental da República Federativa do Brasil.
É o que chama de princípio estruturante, constitutivo e indicativo das ideias
diretivas básicas de toda ordem constitucional. Tal princípio ganha
concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando
um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a ideia de predomínio do
individualista atomista no Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento
jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade
todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se
trata.
Há de se dizer, portanto, que a
assistência social busca tutelar a dignidade humana, proporcionando aos
indivíduos incapazes de prover o próprio sustento um patrimônio mínimo, e que
este mínimo existencial se trata de um direito fundamental, decorrente da
proteção da dignidade humana.
Neste sentido, para a doutrina
contemporânea[3],
“são destinatários deste direito fundamental todos aqueles que, submetidos ao
sistema jurídico brasileiro, sejam nacionais ou estrangeiros”. Para Gilmar
Mendes e Paulo Gonet Branco[4], “o respeito devido à
dignidade de todos os homens não se excepciona pelo fator meramente
circunstancial da nacionalidade”.
Não obstante, no século XIX, o filósofo
prussiano Immanuel Kant, ao tecer as conceituações fundamentais para o
reconhecimento da dignidade humana, tratou inicialmente de algumas ideias
opostas e discriminatórias para sua compreensão.
Uma das principais seria a da determinação
da vontade, associada à liberdade, ou seja, espontaneidade e voluntariedade da
ação. A partir deste pensamento, a determinação de um indivíduo diante de sua
própria conduta poderia ser autônoma (espontânea e voluntária) ou heterônoma,
ou seja, imposta por terceiros. Neste último caso não haveria liberdade. Dessa
forma, o indivíduo deverá agir segundo o dever por si mesmo, conforme o que é
racionalmente correto, porém espontaneamente, de forma que assim é determinada
a liberdade, na capacidade de determinar autonomamente a própria vontade.
Neste sentido, a determinação da vontade
deverá partir da razão individual, sendo esta a única maneira de se agir
independentemente de vontades alheias. A razão, por sua vez, é determinada a
partir de um imperativo, que seria outra ideia a ser considerada. Os
imperativos comandam a razão hipoteticamente ou categoricamente.
Hipoteticamente quando a ação será boa apenas como meio de conseguir algo mais,
e categoricamente quando boa em si mesma.
Logo, temos como correto agir sob o
motivo do dever por si próprio, de forma autônoma, o que nos guia a determinar
nossa razão categoricamente, e não para o bem de outras ações.
Dessa forma, para a determinação
categórica de nossa razão, ou seja, para que o imperativo de nossa razão seja
categórico, Kant elaborou uma fórmula através da qual se imaginaria aquele
imperativo, ou seja, aquele princípio para determinação da vontade como lei
universal, orientando: "então aja como se a máxima de tua vontade pudesse
se tornar sempre, ao mesmo tempo, lei universal"[5].
Mormente tal fórmula, deverá o ser
racional agir fazendo, anteriormente, a análise da possibilidade de
universalização daquela conduta. Ou seja, observar se a ação será certa ou
errada a partir de seu extremo, extremo esse no qual aquela ação fosse
corriqueira. Desse modo, porém, não se estaria refletindo sobre as
consequências da ação, mas apenas avaliando sua retidão através de uma
perspectiva mais extrema, e, por conseguinte, mais fácil de visualizar.
Foi, portanto, necessário explicar a
teoria para chegar à última e mais relevante fórmula: a fórmula da humanidade[6], que ficou exposta através
da seguinte passagem:
Supondo
que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e
que, como fim em si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o
fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei
prática. (grifos nossos).
Nesse sentido, chega à conclusão de que
o homem, como ser racional, existe como um “fim em si mesmo, e não apenas como
meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”[7], de forma que não deverá
nunca ser considerado um mero meio para satisfação de outra vontade, mas sempre
deverá ser tratado também como um fim. Elabora, assim, o principal conceito referente
à teoria da dignidade humana:
No
reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem
preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que
se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência,
compreende uma dignidade.[8]
Desse modo, podemos concluir que todo
ser humano deve ser respeitado em sua existência, por sua essência, não restando
sombra de dúvidas de que a titularidade dos direitos fundamentais é de todo e
qualquer ser humano, pois em todo ele reside o fundamento de um possível
imperativo categórico. O direito fundamental ao mínimo vital, portanto, é plenamente
extensível a estrangeiros, porquanto universal e absoluto[9], de forma que condutas
contrárias seriam não meramente ilegais, mas inconstitucionais, porque
violadoras da dignidade humana.
Conquanto possível e devida referida prestação, não se pode olvidar de que o serviço de assistência social não poderá gerar enriquecimento ilícito, vedado por nosso ordenamento[10]. Assim, devem as autoridades administrativas analisar meticulosamente os casos e critérios.
Conquanto possível e devida referida prestação, não se pode olvidar de que o serviço de assistência social não poderá gerar enriquecimento ilícito, vedado por nosso ordenamento[10]. Assim, devem as autoridades administrativas analisar meticulosamente os casos e critérios.
Calha, inobstante, exibir que a
bipartição atual dos direitos fundamentais em duas dimensões (subjetiva e
objetiva) nos leva ao raciocínio de que a assistência social não existe para
evitar que indivíduos carentes importunem a sociedade, em uma fraca tese
utilitarista.
Os direitos fundamentais, apesar de em
boa parte individuais (dimensão subjetiva), “transcendem a perspectiva da
garantia de posições individuais, para alcançar a estatura de normas que
filtram os valores básicos da sociedade política”[11]. A sua dimensão objetiva,
portanto:
(...)
faz com que o direito fundamental não seja considerado exclusivamente sob
perspectiva individualista, mas, igualmente, que o bem por ele tutelado seja
visto como um valor em si, a ser preservado e fomentado.[12]
Por fim, mostra-se oportuno registrar o
posicionamento da jurisprudência pátria acerca do tema, qual seja:
1.
Recurso interposto pelo INSS em face de sentença que julgou procedente o pedido
de concessão de benefício assistencial de prestação continuada, nos termos do
artigo 203, inciso V, da Constituição Federal.
2.
(...).
5.
O benefício assistencial requer dois
pressupostos para a sua concessão: a idade mínima e a hipossuficiência
econômica.
6.
(...).
12.
No caso dos autos, pela leitura do laudo social e econômico, verifica-se que o
núcleo familiar é composto pela idosa autora, nascida em 01.10.1930, portuguesa,
que reside sozinha e não aufere renda, sendo o imóvel pertencente a seu filho,
que reside em outra casa no mesmo terreno, com esposa e filho e ganha o
equivalente a três salários mínimos em aposentadoria por invalidez.
13.
O fato de a autora ser estrangeira não
exclui o direito à assistência prestada pelo Estado Brasileiro, já que o mesmo
reside no país e é detentor de direitos subjetivos e direitos fundamentais
sociais e econômicos decorrentes da simples condição humana, como
historicamente defendido por Kant. Deveras, a respeito desse tema, tenho
que constitui mandamento constitucional de que o estrangeiro residente no país
goza dos direitos fundamentais assegurados a todos os brasileiros (artigo 5º,
da Carta da República). (...).
14.
O artigo 203 da Constituição Federal diz que
a assistência social será prestada a quem dela necessitar (...), cabendo ao
magistrado analisar o caso concreto em toda a sua amplitude. No caso em apreço,
a anciã autora adentrou ao nosso país, aqui fixando residência em 1953, ou
seja, há aproximadamente 60 anos (...).
15.
Assim, considerando que a parte autora
comprovou o preenchimento dos requisitos necessários, quais sejam a idade e a
situação de miserabilidade, verificada em descrição detalhada no laudo sócio
econômico, está claro que a apelada faz jus ao benefício de prestação
continuada de que trata o art. 203, V, da Constituição Federal,
regulamentado pelas Leis n. 8.742/93 e 12.435/2011, e pelo Decreto n. 6.214/07.
16.
(...).
18.
Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS.
19.
Condeno o recorrente ao pagamento de honorários advocatícios que arbitro em
R$700,00, seguindo entendimento pacificado nesta Turma Recursal, nos termos das
balizas trazidas pela legislação processual. É como voto. (TR5. Processo
00371814220114036301. Juiz(a) Federal Kyu Soon Lee. e-DJF3 Judicial 07/06/2013).
Depreende-se da leitura que a dignidade humana caminha desvinculada da nacionalidade, posto que é intrínseca à essência humana em si. O Brasil, havendo tomado por princípio fundamental a dignidade humana e por objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, não se pode isentar de seu dever para com qualquer indivíduo.
[1] TARTUCE. Flávio. Manual de
Direito Civil: volume único. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013. p. 536.
[2] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto
jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 1190.
[3] ARONNE, Ricardo. Razão e caos no
discurso jurídico e outros ensaios de direito civil-constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 127.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. Ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 197.
[5] KANT, Immanuel. Critique of practical reason. Cambridge texts in the
history of philosophy. Translated by Mary Gregor and introduction by Andrews Reath.
Cambridge: Cambridge University Press,
1997. p. 28.
[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da
metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.
58.
[7] Op. cit.
[8] Op. cit., p. 65.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet Op. cit., p. 162.
[10] Art. 884 do Código Civil.
[11] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 190.
[12] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 191.
No comments:
Post a Comment